Pouca pele

Pouca pele Fernando Rocha




Resenhas - Pouca pele


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Krishnamurti 26/02/2019

POUCA PELE
Há pouco mais de dois anos deparei-me com um pequeno livro de contos sob o título de “Afetos”. Creio que havia sido enviado pela Editora para leitura e resenha. Seu ator era um jovem paulistano. Fernando Rocha. Impressionou-me o pequeno livro (algo em torno de uma centena de páginas) pela qualidade literária, e após a leitura fiz dentre outras, a seguinte apreciação: “Causa-nos satisfação redobrada encontrarmos jovens ficcionistas a perquirir a condição humana como suprema expressão da alma na seara fecunda de suas criações. Como arte que é, a literatura evidencia a idéia dominante de uma época, pois expressa inequivocamente o pensamento humano que ascende ou decai”. Muito bem; após algumas linhas expus mais ‘concisamente’ as minhas impressões sobre aquela obra a partir da fala de uma das personagens: “Não sei se é este carrossel de idéias que não me dá descanso ou se é o excesso de letargia. O que é ser daltônico quando tudo o que se vê é escuridão”. E observei então que aquela personagem, assim como outras do livro, vive “aturdida e angustiada a olhar para tantas coisas que afloram de sua consciência mais profunda, sem conseguir encontrar-lhes a origem. Não consegue deixar de lado a psique exterior da vida prática que é a razão (porque já está num nível terrível de confusão e desesperança), e inquirir, perscrutar a profundidade de si mesmo. Ali onde nascem, irresistivelmente, todas as maiores afirmações de nossa personalidade”.

Muito bem; esse breve preâmbulo é para voltar a falar do mesmo autor em uma nova obra. Por muitas das voltas que a vida nos enreda, recentemente encontrei-me com “Pouca pele”, novo volume de contos de Fernando Rocha e recordo daquilo que escrevi acrescido de um sentimento progresso do autor não somente em qualidade da expressão literária. Há mais. Constatamos que a criatividade do autor evoluiu com suas criaturas. Aquele “excesso de letargia” deu lugar a muita ação. Encontramos novos personagens a viver suas vidas. O ser confuso e letárgico resolve atuar, e o que temos são desventuras existenciais. O escritor e crítico Marcelo Adifa em texto sobre o livro, comenta: “A coleção de contos de Fernando fala sobre a pele e suas nuances, o tocar ou ser tocado e a percepção de realidade que as pessoas comuns têm a partir da sensação de fazerem parte de algo (de uma relação, família, grupo social) na observação da existência a partir da pele. O bom dos contos é que falam exatamente sobre isso: pessoas comuns.” E é dessa forma, e sob esse viés, que encontramos os novos personagens de Rocha. A maior parte deles, seres que se desenvolveram em famílias desestruturadas, sem a presença da figura paterna. Mulheres e homens assumidamente adúlteros, casamentos em frangalhos, desempregados, assédios sexuais nas redes sociais, loucos, imigrantes explorados, vidas de atrizes pornô, perversões sexuais envolvendo gente muito crente em Deus, chacinas, assassinatos, transgressões e despautérios de toda sorte. Eis os cenários em que também nos movemos na vida real. Ou não?

O livro é dividido em duas partes, na primeira o foco dos 23 pequenos contos recai sobre as pessoas comuns como já se disse, mas na urdidura dessas vidas “comuns” um aspecto chama a atenção e vale referir, porque deveras importante: A concisão de estilo do autor.

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) em seu Parega und Paralipomena, que é obra datada de 1851, afirma ser “necessário que se pense de modo conciso e sintético” ele mesmo já havia alertado para a necessidade de “se evitar toda prolixidade e todo entrelaçamento de observações que não valem o esforço da leitura. É preciso ser econômico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela”. Muito bem. O senhor Rocha parece tomado por aquela angústia da concisão muito característica de alguns prosadores de nossos dias, e isto nos remete ao título mesmo do livro. “Pouca pele”, num certo sentido de urgência quanto o que nos vai até faltando, aquilo que Rafaela Fernandes escreveu na orelha da obra: “a pele é a um só tempo interior e exterior, toca e é tocada, membrana de trânsito e trocas, fluxo de sensação e afetos, meio de comunicação que não se satisfaz em ser apenas um mero invólucro ou embalagem”. Assim nós, perdidos e numa carência profunda, carência de tudo. Entretanto, voltemos ao que respeita à concisão que referimos. Não se deduza que o autor transforme suas narrativas curtas em meros fragmentos, anedotas, apontamentos ou alusões. Não. O que de fato ocorre, e o leitor atento o observará, é que há uma perfeita conjugação de ausência/concisão na estrutura (cerne dos contos), não só pelas poucas palavras, mas na condução delas por meio de uma inteligência atilada. Consoante a isso, deve-se ressaltar o maior dos aspectos, que vai além da escolha “cirúrgica” das palavras: o valor narrativo que elas proporcionam, pois não haverá conto, se não houver narratividade - personagens, sucessão, conflito, história aparente e história oculta. É preciso que haja uma história, é preciso contar a história. E é aí que a maestria do texto –pela nuvem inebriante da sugestão- tem que casar o imediato do texto com o alcance imaginativo do leitor. Positivamente o senhor Fernando Rocha vem construindo (sem alardes e trombetas típicos de genialidades duvidosas), uma carreira muito, muito consistente e promissora.

Finalmente dois belos trechos da obra: o primeiro, extraído do conto “Ainda estou aqui”. Antes, porém, imaginemos por um segundo, que pode não ser casual que esse conto abra o volume e transmita de chofre ao leitor a justa medida de como o homem do século XXI se sente. Jogado e perdido no meio do anonimato das massas, já não tem mais nada a dizer, ou já não tem quem o escute. Vejamos se, para além da trama do conto, não fica sugerida a profunda metáfora do que se vai reduzindo o humano.

“Alguém que se foi, mas permanece aqui como um holograma: deitado na cama, de onde não pode mais se levantar, da boca apenas saem sons que não são palavras; a fralda é agora seu banheiro, não sente mais vergonha dos excrementos, não sente mais o controle do próprio corpo. É um refém sem algoz... talvez a má sorte, que ele sempre ignorou,tenha decidido lhe encontrar.”

E outro trecho da segunda parte do livro “Epiderme”, que reúne vinte e cinco excertos de pensamentos que poderiam ser dos vários personagens apresentados nos contos. Apenas um:
XIII – “Quando o cansaço antecede a ação, o futuro é um cadáver fresco, sem beijo de príncipe que o desperte. Perto da pele o vento é o mesmo que balança os galhos da árvore na altura do longe. Os olhos na tela da tevê, sem que nenhuma dimensão se abra, o mundo é salvo por meio de um sorriso que não consigo dar: o futuro é um corpo em quem a esperança faz respiração boca a boca.”
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