Li 06/07/2012
Das semelhanças com O castelo, de Kafka
Não adianta. Chega o momento em que o ouvinte, como que impregnado da palavra, sente que é preciso escrever. Há os que o faça contra tudo e contra todos: desagrado dos pais, carência material, estranhamento que seus textos possam causar, tempo escasso etc.
Moacyr Scliar dividiu seu tempo entre os pacientes e a escrita. Machado de Assis começou a escrever na adolescência e nunca parou. Entretanto, fez carreira como funcionário público, porque sabia dos altos e baixos dos percursos dos escritores que, vindos de famílias com poucos recursos, percorreram.
Se esses autores levaram até o fim da vida duas profissões, há e houve os que, ao verem cobertas suas necessidades pelo rendimento de seus escritos, a proteção de um mecenas ou uma bem-vinda herança, passaram a se dedicar apenas à escrita.
De todo modo, esse impulso motivado por uma paixão ou necessidade interna foi pegar Dyonelio Machado num período em que ele atendia em dois hospitais e num hospício. Os ratos, ele o escreveu em vinte noites, apesar da jornada longa de trabalho. Era verão. A mulher dele lia os manuscritos e uma moça os datilografava. Quando Dyonelio se pôs a escrevê-lo, ele já o tinha pronto na cabeça. Foram nove anos a gestá-lo.
O que chama a atenção na narrativa é o viver medíocre do funcionário público, (representado no texto por Naziazeno), daquele responsável por mover a máquina pública. Esse personagem possui algumas semelhanças com o protagonista de O castelo, de Kafka, não pelas suas energias internas, mas pela absoluta incapacidade de transformar sua realidade. O personagem kafkaniano se vê completamente impossibilitado de cumprir sua função no lugarejo em que se apresenta e pela própria máquina burocrática, para quem ele é nada. E o que é um homem sem um fazer que o distinga? Durante toda a narrativa ele roda, bate, perambula, fala, insiste sem que consiga entrar no castelo (a fim de obter a autorização para que inicie suas atividades).
Enquanto este se vê rendido graças a condições externas, aquele o que tem é uma fraqueza moral, um completo desamor por si mesmo, uma ausência angustiante de sonhos, de metas para si e sua família. E todas as dificuldades financeiras porque passa não despertam nele o guerreiro. Não há indignação, não há a confiança em si. Todas as alternativas por ele vislumbradas para melhoria de vida deposita-as no outro.
Naziazeno entra e sai da repartição a hora que quer. Mas o que ganha mal dá para o sustento dele, da mulher e do filho. E tal qual o agrimensor de Kafka, que chega a dormir no chão, entre cascas de cebola, Naziazeno se rasteja em busca de dinheiro para pagar o leiteiro.
Deve ao leiteiro e não tem como pagar. O sapato da mulher está no conserto esperando pagamento. Não quer passar pelo constrangimento de ter novamente o leiteiro destratando a ele e a mulher por falta de pagamento, os vizinhos ouvindo tudo. Pede ao chefe, mas este se recusa a emprestar (já o havia ajudado quando da doença do filho).
À hora do almoço sai da repartição, mas não vai para casa comer, como costumava. Sai pela Porto Alegre dos anos trinta procurando quem o ajude. Tenta o jogo, o agiota. Um dos conhecidos penaliza-se dele, mas também não tem dinheiro. Propõe penhorar a única peça de valor que tem. E procuram vários profissionais da penhora. Passam a tarde e parte da noite nisso. Não comem. Não têm dinheiro para isso. Passam o dia tomando cafezinhos, que ora um ora outro paga. Cada moedinha retirada do bolso é com parcimônia, porque poucas.
São os ratos.
Durante a narrativa, Naziazeno passa mais tempo em seu imaginário que com os pés na realidade: ora é ele conseguindo o dinheiro, indo para casa com os sapatos da mulher, um brinquedo para o filho, um pedaço de queijo, sendo recebido pelos dois. Fuga?
Ele foge. Do médico que tratara do seu filho e para quem ainda deve. Da repartição que não o trata com o respeito que deseja. Do leiteiro.
Quando finalmente consegue o dinheiro (outro empréstimo) deixa a quantia que cabe ao leiteiro sobre a mesa. Por que não o entrega pessoalmente, olhando o leiteiro nos olhos?
Até cogitara conseguir um outro trabalho à noite, mas desiste. É uma vida pequena, que gira em torno de conseguir o suficiente para continuar vivendo. Só que mal.
Qual a origem dessa letargia? No livro O construtivismo na sala de aula, que é aconselhável, todo professor leia, pois apresenta importantes informações resultantes de pesquisas sérias sobre como a criança aprende, mais especificamente no capítulo três, que trata dos conhecimentos prévios, fica-se sabendo que uma criança nunca se confronta com um novo conhecimento sem já ter construído sentidos sobre ele. Nos seus poucos anos de existência, ela já tem construída uma base:
• a disposição para aprender, para enfrentar algo novo;
• já tem uma autoimagem, de acordo com as experiências e as relações vividas;
• No que se refere aos conhecimentos prévios, ela já tem esquemas de conhecimento em maior ou menor medida organizados, tanto internamente quanto entre si;
Embora Naziazeno seja um personagem fictício, a relação que ele mantém com o trabalho é um aspecto que merece a reflexão dos educadores. Por que o trabalho é visto como peso? O trabalho não é apenas fonte de sustento, é também fonte de realização. Ora, aprender é trabalho sério, mobiliza forças internas do indivíduo. Mas como fazer com que o trabalho de aprender seja uma experiência de realização para os educandos? Levando-se em conta o modo como aprendem. Crianças e jovens aprendem de modo dinâmico explorando, criando, realizando experiências, O ensino que limita o ler para responder questionários ou que abusa dos exercícios de fixação mata a curiosidade, a vontade de agir, natos nos jovens.