Mar 30/07/2022
O que faz a mente ao acordar?
A realidade é desoladora. A realidade é tudo o que temos.
Em um curto volume, Úrsula Le Guin decide apresentar o peso do mundo. A Curva do Sonho é a história de George Orr, mas também da inquietude humana. Orr, um homem cujos sonhos afetam a realidade, procura por drogas lícitas para parar de sonhar. Infelizmente, é pego violando as leis de quantas doses poderia tomar e enviado para uma terapia compulsória, ambos elementos do futuro imaginário de Le Guin, que já se apresenta como um mundo no qual a tentativa de controlar a mente é grande e sistemática, causando tanto eficiência quanto segregação.
O terapeuta e médico de Orr, Dr Haber, é um psiquiatra e especialista em sonhos, e é também um homem que é como uma cebola - todas as camadas são idênticas e não há um centro. Contrário ao seu ser oco, Haber é movido pela ideia de um "fim", um mundo perfeito, um objetivo final. E manipula os sonhos de Orr para que este sonhe as mudanças que Haber julga necessárias para a humanidade.
Orr representa aí o presente, o movimento, a sintonia. Haber é entrópico, objetivista, desconectado. E o mundo é o mundo, natural e morrendo por conta da ação humana. Orr acredita na evolução natural das coisas, em um fluxo. Mudanças e alterações fazem parte desse fluxo, mas deve-se aceitar que só há um mundo, e trabalhar com ele. Só há um continuum.
Haber acredita na Utilidade Humana, em fatores que são úteis para a propagação da espécie humana e sua evolução. Torna-se então um eugenista maníaco, um homem-Deus rebelando-se contra a própria realidade. Então, força Orr a criar outras, e acredita que sempre haverá a seguinte, melhor que a primeira.
Há muito mais n'A Curva do Sonho, porém. De suas alegorias a respeito dos sonhos da natureza, até seus alienígenas oníricos e moderadores da existência. De críticas diretas à destruição do natural e do capitalismo até a necessidade copiosa do humane por amor. Há até mesmo uma discussão poética (que cita TS Eliot) da capacidade humana de suportar a realidade, ou a falta da mesma. Seria impossível, numa resenha de aplicativo, dar o devido foco a cada um dos fatores.
Na realidade, é talvez impossível, se não um objetivo distante, concluir uma análise sólida d'A Curva do Sonho sem tempo, carinho, e muitas páginas. Existem camadas de elementos a serem descobertos, mas só se interessar, também. O volume sustenta-se muito bem se lido com simplicidade, uma crítica ao capitalismo e sistemas de poder que causam desconexão na humanidade - interna e externa, e de uma leitura existencialista que conclui: Só existe essa realidade, esse presente. Ele deve ser vivido, com amor e responsabilidade - e aceitação. Como talvez as melhores ficções-científicas, Le Guin se recusa a criticar sem apontar o potencial de uma saída. A esperança é a chave, ou os "meios" tornam-se desimportantes.
Se há algo a ser criticado, é a densidade dos capítulos. À partir da metade do livro, quando todos os elementos estãono tabuleiro, seu ritmo ganha mais vida, a prosa parece mais focada. Os primeiros capítulos, porém, demoram-se em longas deliberações sobre o psicológico de cada personagem, que apesar de essênciais e bem vindas, poderiam se beneficiar de quebras ocasionais.
Em suma, A Curva do Sonho é uma memória e um aviso sobre o poder que possuímos sobre o mundo, um texto quase imperativo em sua preocupação com a qualidade da vida humana. Uma garantia de pertencimento, mas, acima de tudo, uma crítica:
Esta é a única realidade a ser vivida.