spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 15/08/2019
Laços de Família
Coletânea de treze contos publicada na década de 60 e que fala, em muitas narrativas, da condição da mulher nos anos 50. Por fora, não acontece muita coisa no enredo de cada conto. Mas dentro da cabeça das personagens é que encontramos os conflitos e as mudanças na forma de enxergar as coisas, as grandes transformações no interior de cada uma. Os contos são geralmente enigmáticos e carregados de metáforas. Não existem interpretações únicas. Possibilita que o leitor vá tirando suas próprias impressões diante das pistas que Clarice Lispector passa. De modo geral, o fio condutor de boa parte dos contos é mostrar como a vida daquelas mulheres de classe média, casadas, de família; era linear, padronizada e presa aos costumes da época. E quais são os fios condutores que provocam as modificações dentro de cada uma dessas personagem, o que as deixam inquietas e as fazem refletir sobre aquela condição? É isso que vamos descobrindo. Não há exclusivamente personagens mulheres. Existem outras vozes também. No todo, temos uma mostra de como, das mais diversas formas, os laços de família nos aprisionam.
Devaneio e embriaguez de uma rapariga - o primeiro conto do livro mostra uma personagem entediada com a rotina de dona de casa. Ela chega até a relaxar nas tarefas domésticas mais básicas. Em um jantar com o marido com um rico negociante, ela embebeda-se, o que lhe abre uma possibilidade de mudança de rotina. Ela se sente viva, passa um pouco até dos limites. Há uma passagem interessante de como ela fica com raiva de uma loira bonita que encontra no restaurante. Ela vê que a moça tem uma cintura fina e diz a si mesma que aquela mulher não tem condição de parir e assumir sua verdadeira função feminina. Passado esse episódio, já se sentindo bem, a dona de casa parece ter ganhado um vigor novo e acorda disposta a arrumar a casa e colocar as coisas nos eixos.
Amor - um dos principais contos do livro. A personagem principal é uma mãe de família que vive na bolha dela. Leva uma vida perfeita, bem de vida, tem filhos lindos e saudáveis, ama o marido e sua única preocupação é cuidar dos familiares. Tudo funciona certinho na rotina dela. Certo dia, sai para fazer compras, pega o bonde e uma imagem a perturba. Ela vê um homem em uma condição bem humilde, cego e mascando uma goma. Aquela cena mexeu de tal sorte com ela que acabou passando do ponto de descida, foi parar em um lugar desconhecido e hostil. É como se aquele deficiente visual a fizesse enxergar um mundo bem diferente daquele com o qual ela estava acostumada. Será que aquela mulher era mais cega do que aquele homem que não conseguia ver aquele outro mundo que existia além da vidinha perfeita e linear dela? Ela voltou para casa, voltou à sua rotina, mas não era mais a mesma.
Uma galinha - a narradora é uma garotinha. A galinha, pronta para o abate, consegue fugir, vai parar no telhado. Depois de um tempo, é capturada pelo pai da menina. Antes de morrer, acaba pondo um ovo. A menina alerta a todos a condição de mãe do animalzinho, que acaba virando de estimação da família. Contudo, passou-se um tempo, a história foi esquecida e, em determinada oportunidade, a galinha acabou indo para a panela.
A imitação da rosa- Laura era casada, não tinha filhos. Havia voltado para casa após um tempo de internamento, aparentemente por ter tido um surto. Ela aguardava o marido que estava voltando do trabalho. Os dois iriam jantar fora, na casa de um casal de amigos. Queria, antes da chegada do esposo, já estar pronta, com a casa arrumada, com seu vestido marrom, a empregada despachada e livre para ajudar o marido a se arrumar. Era metódica ao extremo, pensava em cada detalhe. Ela se cansou ao passar todas as camisas de Armando, o marido, e acabou pegando no sono. Ao acordar, se deparou com as belíssimas rosas que havia comprado logo cedo. Resolveu presentear a amiga que os receberia à noite no jantar. Uma cortesia, iria enviá-las pela empregada, mas depois pensou, por que não ela mesma ficar com as rosas, já que eram tão perfeitas. É provável que a perfeição das flores tenha desencadeado um novo desequilíbrio interno. O marido chegou do trabalho e ela não tinha feito nada que havia planejado. Pediu perdão ao esposo, pois não tinha conseguido resistir a esse novo impulso, foi por causa das rosas.
Feliz aniversário- era o aniversário de 89 anos de uma senhora mãe de sete filhos. Ela morava com uma das filhas, a Zilda, que resolveu fazer uma festa para a mãe e chamar os irmãos, sobrinhos, etc. Zilda arrumou a aniversariante e a colocou na cabeceira da mesa para aguardar a todos. Quando chegaram, a velha começou a observar, bastante contrariada, como aquela família era desunida, cada um por si, havia notórios problemas de relacionamento com todos, não existia conexão entre eles. Estavam reunidos pura e simplesmente por conveniência. A dona da festa parecia mero objeto decorativo. Ela ficou bastante contrariada e chegou a cuspir no chão. Todos ficaram espantados. Até que mais tarde foram embora, comentando sobre a dúvida se haveria ou não a festa dos 90 anos. A velha, contrariada, só pensava no jantar que a filha deveria servir e em voltar para a sua rotina.
A menor mulher do mundo- conto narrado em terceira pessoa. Um explorador francês- Marcel Petre- descobriu um povo pigmeu na África. Nesta comunidade havia uma mulher de pouco mais de trinta centímetros, chamada pelo explorador de Pequena Flor. Ela era negra, bem pequena e morava em uma árvore. O achado é publicado no jornal, com foto e tudo, e lido por cinco diferentes pessoas da classe média carioca, que passam suas impressões perversas sobre aquela mulher. Através dessas opiniões, Clarice Lispector trabalha elementos como perversidade humana, racismo, etc. Algo deixa aquelas pessoas inconformadas, como uma “selvagem” sai na foto com um sorriso. Como uma mulher naquela condição é feliz? “Mas aquela não é uma felicidade de gente, e sim de animal”, como resumiu uma outra leitura da notícia.
O Jantar- conto narrado em primeira pessoa. O cenário é um restaurante. O narrador observa de forma atenta um dos atos mais primitivos do ser humano, o de se alimentar. Um senhor chama a atenção do narrador em especial pela “brusquidão” e até intensidade como se alimenta. O narrador espreitava cada gesto. Observou que chegou até a cair uma lágrima do rosto do velho ao levar a colher à boca. Ficou nauseado e não quis mais comer. Enquanto isso, o idoso terminou sua refeição, pediu sobremesa, pagou a conta, deixou gorjeta para o garçom e atravessou o salão para não mais ser visto. O velho, como abordado pelo narrador, oscila em momentos de equilíbrio, força, fragilidade e desmoronamento. Tudo isso observado através dos gestos que fazia ao se alimentar. O episódio deixou o narrador fascinado, ao passo que faz com que o leitor possa ter diversas interpretações daquela cena.
Preciosidade- história de uma jovem de dezesseis anos que vive em seu próprio mundo, como uma espécie de esconderijo, rezando para que ninguém a perceba. Era discreta e não se importava em se embelezar. Tinha uma rotina fixa de ir para a escola, voltar e ficar em casa. Um dia, saiu mais cedo do que o esperado, quando encontra dois homens vindo em sua direção. Quando se cruzaram, sentiu quatro mãos tocá-la. Foi uma situação traumática que a transformou para sempre e fez a transição de menina para mulher de forma brusca.
Os laços de família- Catarina recebeu a mãe em casa para um período de visitas. Duas semanas depois, estava com ela na estação de trem se despedindo. Imaginou como esse curto período de convivência foi complicado, por conta da relação ruim que a velha tinha com o genro. Os dois não suportavam um ao outro, mas curiosamente trocaram palavras gentis na despedida. Dona Severina, em tom de reprovação, lembrava como o neto estava magro. Paciente, a filha concordava. As duas mal se olhavam na estação. Na verdade, nunca tiveram uma relação muito próxima. Catarina era, de longe, mais chegada ao pai. Voltou para casa refletindo, encontrou o marido lendo o jornal, com sua rotina restabelecida com a saída da sogra. Pegou o filho e saiu com ele para um passeio, talvez querendo firmar uma relação diferente com o filho em relação a que teve com a mãe.
Começos de uma fortuna- conto que retrata de modo muito interessante como a personagem principal lida com as relações de sentimento e apego material. Artur foi um garoto que sempre lutou por atenção. Quando criança, adorava quando o abraçavam, acariciavam e apertavam as suas bochechas. Porém estranhava quando o largavam. Queria sempre mais atenção. Era obcecado também por dinheiro. Estava sempre muito preocupado em como adquiri-li e querendo afastar quem poderia estar ao lado dele apenas por interesse. Certo dia, foi ao cinema com seus colegas Carlinhos e Glorinha. Ele se preocupou menos em se divertir do que pensar que poderia estar sendo explorado. Carlinhos queria mesmo era se divertir. Artur não queria gastar, queria sempre era obter dinheiro, por isso ficou contrariado a ter que pegar dinheiro emprestado com Carlinhos para bancar a entrada de Glorinha. Só ficava pensando se a garota não estava apenas agindo por interesse.
Mistério em São Cristóvão- é um conto repleto de simbologia. Uma família, composta de avó, pai, mãe e crianças (entre elas uma garota) vivem a tranquilidade de uma vida abastada, em uma casa admirável. De madrugada, quando todos já dormiam, três homens fantasiados para uma festa (um galo, um touro e um cavaleiro) invadem o jardim da casa, admirados com a beleza do lugar, e colhem um jacinto, flor que representa os prazeres da existência. A menina observou tudo. Começou-se um alvoroço na casa, gritos, aflição e correria. O trio fugiu em tempo. A família chegou a duvidar que estivesse alguém ido lá, mas chega à conclusão de que realmente houve ao ver o talo da flor quebrado. A partir de então, todos lutam para restabelecer o equilíbrio nas próprias vidas.
O crime do professor de matemática- o protagonista da história é um professor de matemática que carrega um remorso. Ao mudar de cidade com a família, ele abandonou seu cachorro de estimação. Certo dia, andando pela rua, encontrou um cão morto. Resolveu enterrá-lo, dar ao animal um último momento de dignidade. Subiu o alto de uma serra, lá de baixo, avistava uma igreja. Ao sepultar esse cão, ele pagaria uma dívida de consciência, seria o enterro simbólico do cachorro que havia abandonado. Ao passo que fazia o enterro, lembrava-se do outro cão, de como foi cruel ao tê-lo deixado para trás. Quando terminou de enterrar o cão morto, passou a olhar fixamente para a cova onde havia enterrado a sua fraqueza. Percebeu que não queria se livrar daquela culpa. Não seria um homem de verdade se conseguisse se livrar tão facilmente daquele peso. Lentamente, desenterrou o cachorro desconhecido e retomou para sempre a sua culpa.
O búfalo- a personagem principal viveu uma grande desilusão amorosa. Queria sentir muita raiva, ódio mesmo, para quem sabe suprimir do peito aquele amor imenso. Mas simplesmente não conseguia. Foi a um zoológico na cidade, observou um casal de leões, tentou buscar o ódio ao observar aqueles animais, mas só encontrou o amor entre o macho e a fêmea. Viu outros animais tentando que eles lhe inspirassem o ódio. Mas ele não vinha. Foi ao parque de diversões do zoológico tentar com que a montanha-russa lhe inspirasse o desejado sentimento de ódio, por sacudi-la e mexer com suas vísceras naquele sacolejo. E nada...Onde estava o bicho que provocaria o sentimento que ela tanto esperava? Encontrou o búfalo. Começou a provocá-lo, gritando e atirando-lhe pedras. O ódio começou a pingar dentro dela. O animal se aproximou lentamente e ela não recuava nenhum passo sequer. Ela cravou um punhal dentro de si mesma, enquanto contemplava o ódio tranquilo com que o búfalo também a encarava. Antes de o corpo baquear macio, a mulher viu o céu inteiro e o búfalo.