davidelira 04/05/2020
As metáforas da doença e da pandemia.
O nome de Susan Sontag foi, desde muito tempo pra mim, um daqueles nomes que pairavam no ar, misturado em meio de referências a escritoras aclamadas pela crítica e conhecidas por seus ensaios e romances. Esse foi meu primeiro livro dela, e tenho que dizer que não saí decepcionado.
O livro é dividido em dois textos, dos anos de 1978 e 1989, que trazem uma tese central e um incômodo que guiou a escrita da autora. A proliferação dos sentidos, atribuídos no surgimento histórico de algum tipo de enfermidade, que constroem uma mitologia ao redor da doença, a colorindo de aspectos metafóricos. A noção central que Sontag passa nesses trechos é a de que não há um sentido a priori para a doença, ela não possui uma intencionalidade própria. A doença é um fato irracional que não carrega um sentido por si só. A faculdade de dar sentidos é do ser humano, não sendo esse significado algo da doença. Na outra via, a autora relata como diferentes doenças foram utilizadas como analogias no terreno da filosofia, ciência e literatura.
No primeiro dos ensaios, Sontag se detém em como essas metáforas se construíram no caso da tuberculose e do câncer. Outras doenças também são abordadas, mas são essas duas que se destacam na argumentação da autora. É impressionante o extenso material que a autora utiliza para tecer suas considerações: romances de várias nacionalidades; de autores como Kafka, Thomas Mann, Stendhal; filmes consagrados como os de Bergman; além de textos filosóficos e científicos. É por meio de amplificações e uma apresentação de vasto material que a autora centraliza noções básicas atribuídas na construção simbólica da doença. Um trabalho interessantíssimo, visto ela buscar se debruçar sobre as fantasias constrúidas em cima dessas doenças, nada mais adequado do que recorrer a arte e a ciência.
No segundo ensaio ela busca atualizar esse raciocínio. Enquanto no primeiro, o argumento buscou chegar no perigo de um sentido intrínseco ao câncer, neste, a autora busca denunciar o perigo nas metáforas em cima da AIDS, conhecida como uma praga que afetava a comunidade LGBT+ e como uma ameaça de pandemia mundial.
Por fim, a principal razão que me levou a ler esse livro foi a eclosão do que estamos experienciando, uma pandemia mundial que carrega a marca de milhares de mortos e um cenário de piora para vários países. Nesses tempos, foram diversas as narrativas que surgiram para dar um sentido, para entender esse evento, o corona vírus. Algumas narrativas, que revelavam uma lógica cruel de eugenia, disfarçada de um discurso ecológico entende o que estamos passando como um tipo de limpeza espiritual da Terra. Outras linhas de pensamento entendem como uma ameaça plantada pela China para um colapso da economia mundial. Não é irreal você ver essa questão a partir da ótica de um meio ambiente em colapso, uma ""resposta"" da natureza ou pensar em questões geopolíticas que possibilitam a erupção dessa pandemia (muito se fala sobre a posição de ocultação de dados por parte do governo chinês). Porém, em última instância, aqui pensando na argumentação de Sontag, o vírus não possui um sentido próprio. Não cabe desprezar as fantasias tecidas ao redor desse evento, já que é por meio da fantasia que vivenciamos a realidade, mas é importante não permitirmos o monopólio de narrativas que ameaçam a vida humana ou que perpetuam racismo e xenofobia.
O texto de Sontag é lúcido e provocativo para o momento que vivemos, no segundo ensaio, do ano de 89, a autora traz reflexões que abordam a exclusão racial, o colonialismo, o autoritarismo como ameças que avançam em períodos de pandemia. Não é de hoje que esses temas nos preocupam e atravessam, ainda mais quando pensamos num cenário de uma democracia vacilante que se vê cada vez ameaçada. Parafraseando aqui Zizek, vivemos num período em que fica mais clara a necessidade de um novo tipo de comunismo (nos moldes do que seria uma aliança global solidária) que dê conta de perigos como esses. Perigos esses que revelam estarmos nessa no mesmo barco.