Mark 03/02/2024
Um grande desvio na rota do desfecho esperado!
Antes de qualquer desenrolar de escrita, quero pontuar que aqui neste texto não me debruçarei em escrever exatamente sobre a história do livro, com riqueza de detalhes, pois meu foco aqui será abordar minha experiência de leitura e tecer alguns comentários sobre pontos específicos que grifei durante este processo.
Que gosto dos livros do Saramago, não é novidade para aqueles que comigo convivem, no entanto, embora tenha apreciado outros livros do autor, este em específico me cativou desde a primeira página. Caso diferente do que me aconteceu ao ler o "Ensaio sobre a lucidez" que embora tenha sido uma excelente leitura, foi um processo de "paquera e conquista" até que me envolvesse de fato com a história.
Neste livro - que não me aterei em resumir, volto a destacar - Saramago cria um universo em que a morte resolve dar um pausa em seu trabalho, um país em que não se morre mais ninguém desde o dia primeiro de janeiro. No entanto, o que para muitos pareceu ser benção, torna-se um grande motivo de caos.
No que toca a isto, acho interessantíssimo que o autor nos traz problemas reais e pertinentes que assolariam qualquer sociedade em que tal caso se instalasse. Problemáticas como a questão dos hospitais, nos quais pacientes em estado terminal jamais morrem e acumulam-se aos corredores e demais salas, bem como questões previdenciárias, pois se ninguém morre, como poderá o governo sustentar infinitos aposentados no futuro? Ou até mesmo funerárias que agora se veem à beira da ruína por não terem mais clientes - e isto nos rende um hilário desfecho, que é a obrigatoriedade de enterros de animais de estimação, pois estes ainda morrem naquele país, para que se haja o sustento das empresas - e além disso, vem aqui um ponto muito interessante: a Igreja se vê desesperada diante da não mais existência da morte.
Isto me rendeu um bom trecho a ser observado pois tenho a característica de ser uma pessoa muito crítica à Igreja e seu sistema de governo. Desde menino, compreendo que o medo sempre foi uma das mais potentes armas que a religião - em termos gerais - usou contra aqueles que a seguem (e também aqueles que não a seguem). Sobre isto, Saramago (p. 36) denota
"As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como o pão para a boca."
Posteriormente, ainda na mesma página, o autor ao descrever sobre o medo e a morte, sob a abordagem da igreja, retoma que
"é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu [...]"
No tangente a isto, creio que as palavras do autor, expressas pelo personagem, se bastem e não careçam mais explicações.
Para mais, acho muito interessante o modo como Saramago conversa com o leitor, por meio do narrador da história, fazendo comentários que explicam as curiosidades que ele mesmo, páginas antes, parece propositalmente nos evocar. Além disso, o autor também tem o hábito de se corrigir, de fazer notas e comentários sobre sua própria narrativa, o que traz ainda mais beleza ao escrito, pois sentimo-nos como quem ouve uma relato verbal, uma conversa à mesa.
Com o desenrolar da história, vê-se que a morte, outrora compreendida como a destruidora de futuros, agora é na verdade, como bem fala um dos personagens, aquela que, na verdade, promove a garantia de um futuro, quanto este comenta que "se não voltarmos a morrer não teremos futuro."
Embora saibas que isto nada tem a ver com a filosofia cristã, algo nesta frase me lembrou-a, uma vez que o Cristo, segundo os relatos dos apóstolos, destaca que - em síntese - devemos perder nossa vida para encontrar a verdadeira vida; devemos morrer (para o mundo) e renascer (para Cristo). Algo nesta relação me faz pensar um pouco que, embora o autor muito possivelmente não a tenha abordado, existe aqui no livro a lição de que é preciso morrer, é preciso que algo se finde para que algo novo se inicie. Quanto a este ponto não poderei guiar-lhes mais adiante, pois ainda é algo fresco em minha mente e sequer sei se virá a se sustentar em outras releituras deste livro. Deixo-lhes aqui a incógnita.
Já na altura da metade do livro, o autor parece resolver a questão central do livro - a "folga", assim digamos, da morte - e isto a mim gerou uma certa dúvida, pois, se o tema central do livro é solucionado, o que haveria de se desenvolver nas ainda outras mais de cem páginas restantes?
Bem, quanto a isto a resposta é simples: o autor parece nos inserir a uma história dentro da história. Agora vemos as dinâmicas, assim como os dilemas, da morte - agora retratada como um personagem propriamente dito do livro, e não mais como algo, uma ideia, uma filosofia.
A morte, com "m" minúsculo (aqueles que lerem o livro entenderão os motivos) agora, por meio das palavras do narrador, relata-nos com um certo tom engraçado, me permitam destacar, seu processo de matar as pessoas. No entanto, a ossuda depara-se com um teimoso, que insiste em não morrer e ela insiste em matá-lo. Esta rinha de gatos parece não ter outro fim senão a vitória da morte, mas algo completamente inesperado...
COMPLETAMENTE INESPERADO
... perdoem-me a interrupção gritante do texto, mas não poderia deixar de destacar meu espanto e ao mesmo tempo admiração pelo "desvio da rota esperada" que o autor nos encaminha, levando-nos a um desfecho jamais cogitado.
Este livro me deixou além de boas risadas, pois sim, trata-se de uma obra com um bom tom de humor, excelentes reflexões sobre a vida, sobre a morte, sobre a sociedade e, inclusive, sobre as palavras, pois como em mais de um momento o autor nos lembra: as palavras mudam, seus significados mudam, o que elas dizem, muda! e não devemos nos ater aos significados do passado apenas, mas compreender seus novos usos.
Com isto eu findo o meu relato desta leitura e espero deixar-vos com um leve desejo de ler e mergulha neste universo.
Um abraço e boa leitura.
site: https://umlinsqualquer.blogspot.com/2024/02/as-intermitencias-da-morte-jose-saramago.html