Cora 17/04/2019
Resenha sobre o livro Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre o homem X monstro.
É nas entranhas da personalidade humana que conhecemos e velho e sucinto Eichmann. O livro, de natureza jornalística, abre as portas para um julgamento que, de muitas formas, foi um marco na história. Para os judeus, o que se percebe pelo relato da inteligentíssima Hannah, uma judia de espírito livre que busca, ainda que sentindo a dor do seu próprio povo, encontrar a melhor resposta para o julgamento de um homem que era mais humano do que monstro – mais do que muitos de nós.
“o que Eichmann deixou de dizer ao juiz presidente durante seu interrogatório foi que ele havia sido um jovem ambicioso que não aguentava mais o emprego de vendedor viajante antes mesmo de a Companhia de Óleo a Vácuo não aguentá-lo mais. De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele – já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também – podia começar de novo e ainda construir uma carreira. E se ele nem sempre gostava do que tinha de fazer (por exemplo, despachar multidões que iam de trem para a morte em vez de forçá-las a emigrar), se ele não adivinhou antes que a coisa toda iria acabar mal, com a Alemanha perdendo a guerra...” (p. 45)
Tudo começa com a captura, se é que podemos chamar assim, de Adolf Eichmann. Ele, levado para Jerusalém, é colocado perante um tribunal para ser julgado e condenado.
Eis que começa o problema.
O que percebemos é um júri formado massivamente por judeus, desde seus juízes até seu advogado de defesa. O que se torna visivelmente problemático ao percebermos que, ao longo de toda a narrativa, atitudes deixaram claro que Eichmann deveria ser condenado. Mas o que todos esperavam encontrar, na verdade se revela apenas um espectro. Da criatura fria, calculista e desumana, o que se revela é um homem comum, apaixonado pelo poder e que acreditava no sistema em que vivia. Acreditava tanto que, em momento algum, acreditou que o que estava fazendo era errado. E, se o fosse, nunca tinha sido apontado como tal pelo resto do mundo, que observava calado os atos nazistas.
Hannah tenta, com sua imparcialidade serena, mostrar que existe mais daquele homem em nós do que ousamos admitir. Talvez muito pior. Ele não é um psicopata, nem um maluco sem escrúpulos. Ele é apenas o burocrata que o partido nazista precisava, que amava seu país e seu partido e acreditava que o que fazia era certo.
“os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam” (p. 121),
Um homem que, em certo momento tenta trazer certo consolo ao povo judeu, ao invés de mata-los, deportou um grande número para longe. Quando não havia mais para onde manda-los, houve o extermínio. Hannah é clara ao apresentar a mudança solene do homem sob o peso de ordens e autoridades superiores. Nunca questionando de fato, pronto a aceitar qualquer comando e a executá-lo de forma rápida e precisa. Não negou os autos ao tornar-se executor e ordenar a morde de milhares e milhares de judeus nos campos de concentração.
A banalidade do mal se encontra na figura obtusa daquele homem. Seria ele mesmo um monstro, ou apenas uma marionete do Estado Nazista, cumprindo o dever que seu cargo exigia, ainda que para isso precisasse usar de uma violência homicida e uma frieza tão comum aos alemães?
Hannah deixa claro que vai muito além disso.
Em muitos momentos, sua serenidade assusta. Seria um carrasco ou apenas um funcionário obediente e cumpridor dos seus deveres, que não fizera nada além de cumprir ordens de um superior?
Ela mostra os dois lados.
O homem e o funcionário. Cada qual independente um do outro.
Eichmann nunca negou os crimes que cometeu. Nem pareceu arrepender-se deles. Mas foi incisivo quando lhe era aplicada culpa sobre o que não havia feito. Novamente, ele se via diante de uma cena da qual ocupava um lugar importante, bom ou mal, diante de todos. Dessa vez, porém, muito mais do que entre os grandes generais nazistas. O mundo o encararia mesmo depois de sua morte. Para ele, seu último grande ato. Para os judeus, uma forma de calar um ódio e desejo de vingança que se espalhou pelo coração de muitos.
A vida comum que levara na Argentina pouco deixava transparecer o homem apaixonado por poder. Apesar de nunca ter realmente se escondido, não havia nada naquela vida da qual lembrasse o velho homem. Talvez essa tenha sido sua única frustração.
Eis que Hannah nos convida a pensar e a questionar a veracidade daquele julgamento. Percebemos que existe mais por trás das cortinas do que querem que saibamos.
De todas as coisas relatadas e apresentadas no livro, talvez a que mais me assuste seja a proximidade da personalidade de Eichmann com a da grande maioria de nós, que nos julgamos cidadãos de bem. O discurso não se separa muito do que ouço pelos corredores da faculdade e até mesmo dentro da minha própria casa. Se existe um monstro, talvez todos nós sejamos monstros. Eu acredito na culpa, mas em momento algum acho que sobre ele caem todas as responsabilidades. Sabemos que houve amparo na lei e, de certa forma, do mundo, que se manteve em completo silêncio enquanto tudo acontecia. Todos temos culpa. Todos somos menos humanos do que nos pintamos em frente ao mundo.
Eis que termino com um último trecho do livro:
“Suponhamos, hipoteticamente, que foi simplesmente a má sorte que fez de você um instrumento da organização do assassinato em massa; mesmo assim resta o fato de você ter executado, e portanto apoiado ativamente, uma política de assassinato em massa. Pois política não é um jardim de infância; em política, obediência e apoio são a mesma coisa. E, assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações – como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo -, consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual você deve morrer na forca.”