Roberto Soares 08/09/2021Datada aproximadamente de 1594, "A Megera Domada" é mais uma das peças de Shakespeare que encontrou um lugar no imaginário popular desde sua publicação, partindo ela própria de um dos temas mais populares em todas as culturas: a domação do indomável. Datada aproximadamente de 1594, "A Megera Domada" é mais uma das peças de Shakespeare que encontrou um lugar no imaginário popular desde sua publicação, partindo ela própria de um dos temas mais populares em todas as culturas: a domação do indomável.
Catarina é a megera da peça, protótipo da "mulher difícil", agressiva, insolente e leal apenas aos próprios desejos e opiniões, o oposto de sua irmã Bianca, modelo clássica da jovem "bela, recatada e do lar". Enquanto a primeira é o pesadelo dos bons partidos de toda a Pádua, a segunda arrasta pretendentes por onde quer que passe, o que inquieta o pai das moças, Batista, uma vez que é inconcebível que a filha mais nova se case antes da filha mais velha.
Mas eis que, buscando dar fim a este entrevero, Batista decreta que nenhum homem deve cortejar Bianca enquanto Catarina ainda estiver solteira. O desespero logo se instaura entre os envolvidos, mas por pouco tempo, pois eis que surge em cena Petrúquio, um rico viajante que busca preservar sua fortuna às custas de um bom casamento, não importando com quem seja.
Vendo aí suas chances, Petrúquio é "contratado" para conquistar Catarina e leva-la ao altar, de modo a agradar a Batista e deixar o caminho livre para Bianca. Começa-se então o processo de domação da "megera", em que Petrúquio irá lançar mãos de truques que por fim tornarão Catarina não apenas "casável", mas também controlável e inofensiva.
Enredo tenebroso, certo?
Mas estamos falando de Shakespeare, então nada é o que parece. É claro que Catarina não é "domada" coisíssima nenhuma: ela percebe qual é o jogo de Petrúquio, entra nele, o vira e o vence. É claro também que ela vai fechar a peça triunfando em um monólogo cifrado carregado de ironia, deixando bem claro que embora finja obediência, é ela quem está no comando. Em um exemplo clássico de comédia de costumes, Shakespeare não apenas nos apresenta uma Catarina como a detentora de uma compreensão da realidade mais verdadeira que os homens, como também mostra como a arte da ironia e da perspicácia podem ser superiores à força bruta quando se trata da vida em sociedade.
E temos aqui também uma espécie de comédia romântica: de todas as peças de Shakespeare que li até o momento, essa é a mais carregada de provocações sexuais, expressões violentas de paixão e de excitação partindo de todos os lados. Não é à toa que vários autores colocam Petrúquio e Catarina como o mais feliz casal shakespeariano: embora no início ambos enxerguem um ao outro como oportunidades convenientes, não é difícil perceber que o desejo existe, e quer ser satisfeito.
Maaaas isso não quer dizer que é uma peça divertida e agradável de se ler. Há cenas em que Shakespeare expõe aspectos de misoginia e machismo de tal forma que somos colocados diante da face maníaca das convenções sociais, que não pode ser atenuada por nenhuma ironia, piada ou interpretação possível. Deve ser lida com cuidado e discernimento, mas acho que deve ser lida, sem cair em anacronismos, mas dando atenção a como um texto do século XVI denuncia algo que ainda deve ser denunciado no século XXI.