Gabriel 22/06/2023
O sarapatel das encruzilhadas é a gramática do tambor
Antes de tudo é inevitável deixar de pontuar como a experiência desse livro é fundamentalmente carioca. A excelência e carisma da escrita do Luiz Antonio Simas (comparada com a de João do Rio logo no material de apresentação) é convidativa e fresca para qualquer um, mas possui um têmpero familiar a quem é de casa. Como ele mesmo se apresenta, é o primeiro carioca de uma família nordestina e esta mistura desde cedo lhe permitiu o olhar aguçado aos locais exatos onde os diferentes se costuram, se misturam. Malandro junto com trabalhador, homens nas mesas dos bares, camelôs vendendo, churrascos de gato na rua com santos baixando na porta bandeira. O Rio se define pela indefinição, o que não é tão fácil de se trazer em palavras. A contradição é uma condição natural de grandes centros urbanos, uma disputa sem fim entre poderes sobre a cultura, sobre a experiência coletiva e quem tem direito a ela. O que parece destacar a cidade do Rio nesse aspecto talvez seja a dimensão deste confronto, espalhada por todos os cantos, incontornável mesmo nas áras mais gentrificadas. Seus valores estão sempre em jogo.
O livro de Simas se desmembra em diversos pequenos textos breves comentando paralelos, observando cronologias e celebrando as ruas dos muitos Rio de Janeiro que existem, atentando pra natureza de seu samba, de sua religiosidade, dos eres, pombagiras e caboclos que olham por seus protegidos. Contemplações sobre o futebol, sobre o carnaval, sobre tudo que entra em ebulição no asfalto são a regra. Diversos aspectos sociais que são herança de uma mestiçagem forçada por incontáveis violências provam o sabor pela vida dos descendentes de uma história tão bruta. O que os apontamentos mais importantes de Simas trazem é como esta cultura popular é, cada vez mais, engenhosamente cooptada, domesticada e comercializada como artigo de luxo, capricho de mercado turístico de uma lógica coorporativa que vê nas manifestações mais espontâneas um recurso de gerar receita. É o movimento que encarece os estádios de futebol e promove carnavais privéé, vindo de um poder político que buscou desde o início do século passado uma máscara francesa pra disfaçar seus traços africanos e lusitanos.
O texto de Simas é muito adequado e pertencente à cidade, tornando a leitura um passeio tão sofisticado quanto é ordinário em seu carinho pelo comum, pelo que surge da vontade corriqueira e não do mercado financeiro. O único desafio maior na leitura é que a sua tese sobre "o encantamento das ruas estar em crise", que é o ponto central, se espalha pelos diversos textos com as mesmas palavras, as mesmas conclusões, os mesmos chavões, ao ponto em que parece mais um vício literário de arrematar todo capítulo com uma grande frase de efeito quando a narrativa por si só já era o bastante. Fica a sensação de que esses textos mais foram enfiados juntos pela proximidade temática do que coordenam uma linha de raciocínio, tornando boa parte da leitura meio redundante, ainda que tenha menos de 180 páginas.
Reforço, é uma leitura agradável, cheia de pesquisa e cuidado acerca da história do Rio e suas mais modernas contradições e disputas de símbolos. É só que ele se repete demais, causando impressões equivocadas de que não há tanta confiança no leitor ou de que não há tanto a se dizer (não parece ser nenhum dos dois casos, mesmo). Enfim, uma leitura adequada para os que são letrados na gramática do tambor.