Lucas 30/01/2023
Jornalístico, ficcional, histórico e visceral: a República Dominicana como síntese de toda a América Latina
Como um país com área equivalente a cerca de metade do Estado de Santa Catarina, menos de dez milhões de habitantes, incrustada na ilha de Hispaniola junto com o Haiti no Caribe pode servir como pano de fundo de um dos melhores livros de um vencedor do Prêmio Nobel de literatura? Tirando o fato de ter sido escrito pelo peruano Mario Vargas Llosa (1936-), o leitor mais desavisado poderia inicialmente desconfiar de um livro com essa proposta.
Mas essa desconfiança virará pó rapidamente. Basta que o leitor leia algumas dezenas de páginas de A Festa do Bode (2000), ambientado na República Dominicana e tendo como escopo a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo Molina (1891-1961). Usando sua origem jornalística e misturando isso a uma inigualável capacidade narrativa, Llosa (vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 2010, um dos seis latino-americanos laureados com o prêmio e o único ainda vivo) constrói um livro que descreve uma história real com pontuais elementos ficcionais.
A ficção recai sobre Urania Cabral, protagonista feminina da obra e filha de Agustín Cabral, ex-senador e ex-ministro de Trujillo. Urania, que abarca consigo o primeiro dos três núcleos narrativos do livro, está voltando à República Dominicana por volta do ano de 1996, trinta e cinco anos depois da queda do ditador. Agora uma mulher de 49 anos, dona de uma carreira profissional de sucesso, ela regressa ao seu país carregada de amargura e ressentimento. Ao visitar seu pai, inválido e acamado, ela destila um ódio incomum, mas que aos poucos vai se mostrando justificável.
Obviamente que tais justificativas são derivadas da ditadura de Trujillo e é para lá que Mario Vargas Llosa nos leva nos núcleos seguintes. Primeiramente, o narrador "acompanha" o ditador em mais um dia de trabalho: na verdade, o derradeiro dia de sua vida, o histórico 30 de maio de 1961. Neste sentido, Trujillo encontra-se com vários personagens reais, como o chefe do Sistema de Informações Militares, coronel Johnny Abbes García (1924-1966 ou 1967), sádico comandante do sistema de repressão do regime; o "presidente fantoche" Joaquín Balaguer (1906-2002), discreto e manipulado por Trujillo; e o senador Henry Chirinos, conhecido como "Imundície Humana" ou "Constitucionalista Bêbado", caricato e grande orador. Através de diálogos com estes e outros personagens, o leitor conhece a personalidade do "Chefe" ou "Benfeitor" ou "Generalíssimo" Rafael Trujillo, sua animosidade e comportamento selvagem e inescrupuloso. Até então um aliado de primeira hora dos Estados Unidos na região do Caribe (especialmente em função do seu ódio aos comunistas, diga-se aos cubanos, que tinham acabado de instaurar um regime de esquerda), a força e amparo político de Trujillo no livro já são coisas do passado. Naquele momento, ele enfrentava sérias crises de apoio em função de várias temeridades por ele cometidas, como o brutal e oficialmente inexplicável assassinato das três irmãs Mirabal em 1960, as quais eram oposicionistas do regime. Estes e muitos outros eventos anteriores são comentados nos desdobramentos desse núcleo do ditador: a República Dominicana é um país com uma história brutal.
Em contraposição a Trujillo, há o terceiro núcleo narrativo: o dos revoltosos, que arquitetaram o assassinato do algoz ditador na supracitada data. Neste contexto, o autor nos leva para dentro de um dos carros que serviriam para eles assassinarem Trujillo numa emboscada. Basicamente são quatro os personagens principais: Amado "Amadito" García Guerrero, Salvador "Turco" Estrella Sandhalá, Antonio Imbert e Antonio De La Maza, todos eles descritos isoladamente, inclusive no que tange aos motivos individuais para aderirem a este movimento. Aqui, vale um adendo que se mostrou útil a quem não sabia muita coisa dos desdobramentos dessa execução, como este que escreve: é sensato que o leitor não procure saber o que houve após o assassinato, pois isso pode afetar o encanto que a descrição de Llosa causa.
Até mais ou menos o capítulo 12 (o livro possui 24 capítulos), a divisão é muito clara entre eles, seguindo a sequência Urania – Trujillo – revoltosos. Depois, essa simetria se perde e o livro fica (ainda) mais cinematográfico. Não é segredo para ninguém a morte do ditador, mas a República Dominicana entra em ebulição: intrigas políticas, sevícias, desdobramentos, etc., é tudo construído a partir de um narrador intenso, capaz de misturar crueza e poesia num simples parágrafo. É lúdico, incrível e fragmentado (este um dos traços característicos de Llosa), sem ser confuso ou abalar o ritmo.
Este núcleo dos revoltosos, apesar de não receber o foco de protagonismo do livro (este cabe à Urania Cabral e seus conflitos não resolvidos), é o mais significativo d'A Festa do Bode, pois deslinda praticamente todos os predicados de uma ditadura. Historicamente falando, há uma tendência quase generalizada de se tratar o regime de Rafael Trujillo na República Dominicana como um compêndio preciso das muitas experiências similares implantadas na América Central e América do Sul ao longo de todo o século XX. As torturas, as perseguições, as censuras, os processos judiciais capengas, as prisões políticas, a influência da comunidade internacional (diga-se dos Estados Unidos e sua volatilidade em relação ao regime totalitário de acordo com interesses próprios), eleições fraudadas, um canhestro culto à personalidade de algum herói supremo... Tudo isso e muito mais ocorreu na República Dominicana, mas também se viu em pelo menos uma dúzia de latino-americanos praticamente no mesmo período. A diferença é que os dominicanos vivenciaram isso tudo num outro patamar: até mesmo o mais informado leitor sobre ditaduras e seus modus operandi ficará chocado com o nível de radicalização do trujillismo.
Além dessa questão histórica, o livro frisa a política como ciência fascinante, apesar dos inegáveis fins difusos pelas quais ela se sustenta. Uma faceta em especial é a relação de indivíduos com oportunidades: a ocasião não necessariamente faz o ladrão, mas é a alavanca capaz de impulsionar tipos então comuns a posições de destaque dentro de uma nova hierarquia. Ser político é dominar a arte da espera, mas em A Festa do Bode, se reforça a capacidade de ação quando a hora chega. Nestes momentos, a inteligência fina, a discrição, a capacidade argumentativa podem ser armas mais poderosas que tanques ou dedos em riste. É intelectualmente admirável, mas moralmente execrável, como nós brasileiros bem sabemos.
Na esfera histórica e social, a leitura torna nítida ao leitor não só os aspectos "presentes" de um regime ditatorial, marcados pela opressão e corrupção generalizada, mas também o "depois": os reflexos de um regime autoritário, e no caso dos dominicanos isso é ainda mais acentuado dada a influência que Trujillo tinha, são capazes de reverberar por muitos e muitos anos depois da sua queda. Seres humanos destruídos e traumatizados normalmente são o maior legado das ditaduras sangrentas. Cobertas pelo véu de um discurso nacionalista e de defesa de interesses pátrios, atrocidades inomináveis são e foram cometidas. Defender a democracia, nesse caso e apesar de todos os seus problemas, não é simplesmente concordar com o direito a voto, mas sim proteger a sociedade destes danos, garantindo com que o futuro seja mais harmonioso e inclusivo.
Tais atrocidades aqui podem ser vistas na ficção, que se restringe à Urania Cabral e familiares, onde Vargas Llosa tampouco deixa a desejar. Por mais que certos detalhes não possam ser ditos, é angustiante acompanhar a história desta personagem, através de monólogos e diálogos que misturam passado e presente. Seus traumas aparentemente se mostram originários de facetas imaturas de sua personalidade, esnobismos de uma pessoa que venceu na vida e renega sua origem. Mas aos poucos sua figura vai sendo avaliada mais de perto e com a lupa narrativa do autor vemos que as cicatrizes de Urania são extremamente profundas... Tão profundas que o leitor poderá sentir-se com remorso por ter lhe ocorrido percepções tão primárias acerca de tanto dano. Urania Cabral, apesar de ser construída com o claro propósito de protagonizar A Festa do Bode, não é uma mulher inesquecível, uma heroína com ideais populares, capaz de aglutinar outros personagens em função do seu encanto. Mas ela é o maior símbolo do que Llosa parece ter desejado com a obra: mostrar os efeitos óbvios, individuais e ocultos de um regime ditatorial, que não se cansa de agir como numa distopia para operar e influenciar quem quer que seja.
Tudo isso está contido na "festa" do "bode" do título: ficção, história real, jornalismo e até traços distópicos. Sob qualquer uma destas vertentes, a história de Trujillo e seu domínio nefasto na República Dominicana concebeu, através das mãos de um gênio chamado Mario Vargas Llosa um livro notável, com uma grande capacidade de reflexão, entretenimento e informação histórica: sem o encantamento mágico e fantástico que tão bem caracteriza essa literatura, A Festa do Bode é uma das melhores obras latino-americanas do século XXI.