A festa do Bode

A festa do Bode Mario Vargas Llosa




Resenhas - A Festa do Bode


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Alê | @alexandrejjr 31/05/2021

As verdades de uma mentira

Romance histórico por excelência, “A festa do Bode” é um livro ambicioso. Vargas Llosa conseguiu, mais uma vez, fazer uma peça descomunal de literatura que, como todas da mesma linhagem, tem apenas uma necessidade: leitores.

Em um exercício hercúleo de (re) imaginação histórica, Vargas Llosa recria as cicatrizes que assombram a América Latina. Dividido em três eixos narrativos extraordinários, “A festa do Bode” discute a construção da identidade da República Dominicana no século XX. Mesclando personagens reais e imaginárias, fatos históricos e diálogos ficcionais, Vargas Llosa torna palpável a junção de letras, frases, parágrafos e páginas, colocando os leitores em foco.

No meio de uma nação que sofre a opressão política de um regime de exceção, acompanhamos os momentos finais de um ditador cercado por seus torturadores bajuladores, os movimentos dos conspiradores dissidentes e ainda exercemos a difícil tarefa de relembrar as vítimas sem voz em mais uma das sanguinárias ditaduras que marcaram (e marcam!) o Novo Mundo.

Romance poderoso, "A festa do Bode" é uma incursão, via literatura, nas entranhas das relações de poder. De acordo com a tese de doutorado do professor Sergius Gonzaga, da UFRGS, Vargas Llosa sempre buscou demonstrar o peso opressivo do poder sobre os indivíduos. E talvez ele seja o escritor que fez disso a razão da sua literatura. Para Vargas Llosa, o individual sempre terá impacto no coletivo e vice-versa.

A recriação do país caribenho que carrega as marcas da violência do regime imposto pelo general Rafael Leonidas Trujjilo Molina, o Bode, é simplesmente impecável. Assim como eu, boa parte dos leitores brasileiros nunca pisou no país em que se passa o romance e em nada isso interfere o poder imaginativo que Vargas Llosa entrega aos leitores, fazendo todos enxergarem a sua própria República Dominicana. É interessante refletir como o autor permite que personagens reais do romance, como o Bode e Joaquín Balaguer - ex-presidente fantoche do país e importante peça da curta “transição democrática” -, sejam seres homônimos e orgânicos no romance, e, portanto, tornem-se parte do mesmo universo em que é contada a história de Urania, personagem pertencente ao “núcleo fictício” do livro. Aqui, o impacto das verdades em uma mentira transcende os limites da verdade histórica. O velho acordo existente desde os tempos de Cervantes e Shakespeare entre quem escreve e quem lê ganha um novo patamar e a ambiguidade entre história e fábula é acentuada a cada página virada.

E como não falar das personagens - pelo menos de duas delas. Com uma habilidade magnética, Vargas Llosa mostra no Bode as características que marcaram todos os tiranos da América Latina: homens que favoreciam relações de poder, descendentes de uma cultura machista que (ainda) sangra seus países, dotados de um narcisismo imensurável e um inerente autoritarismo. Já em Urania, voz feminina que em nenhum momento parece inverossímil, acompanhamos gradativamente a criação do horror de um passado. Quando chegamos ao clímax do evento traumático que marca a personagem, nosso sentimento de pertencimento àquilo que chamamos de humanidade se apaga como um fósforo no meio da escuridão. É chocante, violento, marcante e, principalmente para os homens, didático. O romance possui uma penca de personagens interessantes mas, para fins de encurtamento deste texto, deixo aos leitores que descubram como a obsessão flaubertiana de Vargas Llosa por detalhes permitiu a criação de personalidades, cenas e lugares memoráveis - mesmo que na maior parte do tempo desagradáveis.

Esta é a segunda obra-prima que leio do autor. A anterior foi o monumental "Conversa no Catedral", livro invejável do peruano, dotado de um esmero técnico incontestável. A leitura de “A festa do Bode” é um exercício crítico e de solidariedade à memória coletiva de uma nação. Por isso, sinto-me confortável em escrever com todas as letras, até para quem não se permite separar autor e obra: Vargas Llosa é o maior escritor latino-americano vivo.
Eva 02/06/2021minha estante
Qual recomenda que coloque primeiro na minha lista A Festa do Bode ou Conversa no Catedral? Até agora só li As Travessuras da Menina Má


Alê | @alexandrejjr 02/06/2021minha estante
Eva, eu indicaria "A festa do Bode", pois é tão magnífico quanto "Conversa no Catedral" e abusa menos da técnica apurada que ele aplica no segundo.


@Spreadthereading 03/06/2021minha estante
Em resumo: é um livro fod@stico! Pra mim, é o melhor disparado do Llosa!


Alê | @alexandrejjr 03/06/2021minha estante
Exatamente, Laura. E eu fico numa corda bamba, pois não sei definir meu preferido, se é esse ou "Conversa no Catedral". Talvez o segundo seja mais ambicioso ainda, pela questão técnica.


Helder 15/04/2022minha estante
Ótima resenha. Livraço mesmo. Obra de arte. Se ainda não leu, recomendo ler Guerra do Fim do Mundo. Outra obra sensacional


Danielle.Oliveira 25/08/2022minha estante
Amei a resenha!




Pedróviz 04/01/2022

A Festa do Bode
Este é o segundo livro que leio de Mario Vargas Llosa. A Festa do Bode é baseado no período em que Rafael Leónidas Trujillo Molina foi o ditador da República Dominicana. O enredo não se limita a esmiuçar os sinistros bastidores do governo trujillista, da conspiração armada para seu fim e do terror que isso desencadeou. Também gira em torno das amargas lembranças de uma mulher que jamais perdoou seu pai, um fiel ministro trujillista caído em desgraça.
A linguagem é acessível, há bastante elementos históricos na narrativa que podem ser verificados e o enredo é envolvente. Um livro completo. Cinco estrelas.
Justi 05/01/2022minha estante
Quero ler




Otávio - @vendavaldelivros 07/04/2022

“Matam os nossos pais, nossos irmãos, nossos amigos. Agora também as nossas mulheres. E nós, resignados, esperando a nossa vez”.

Quem sou eu para dizer o que você deve fazer em relação às suas leituras, mas acredito poder afirmar que, caso você goste ou tenha interesse em literatura latino-americano, “A festa do bode” do peruano Mario Vargas Llosa é, sem sombra de dúvidas, um de seus melhores representantes.

Publicado em 2000, o livro possui três linhas narrativas principais, todas elas girando em torno da figura de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana entre os anos de 1930 e 1961. A primeira linha é narrada por Urania, uma mulher forte, decidida, que regressa ao país após décadas de exílio e revisita em memórias sua história ali. Filha de um dos principais oficiais do regime, Urania não mantinha contato com o pai e retorna, também, para resolver essas arestas.

A segunda linha é focada no último dia de vida do ditador Trujillo (que era apelidado de Bode, por isso também o título do livro). Do momento que acorda ao momento que é assassinado, acompanhamos pensamentos e interações de Trujillo, bem como algumas memórias de sua história. A terceira linha acompanha os assassinos do Bode na noite do atentado, traçando o perfil de cada um, com suas histórias e motivações, já que muitos deles foram trujjilistas em algum momento.

Gosto quando fico sem palavras para descrever uma história. A festa do bode foi, até o momento, o melhor livro que li no ano. Intenso e emocionante, me peguei diversas vezes avançando na noite preso na narrativa do autor. É meu terceiro livro do Llosa e, de longe, o melhor. Mesmo sendo um calhamaço de 450 páginas, a narrativa é tão empolgante que a gente não vê o tempo passar.

Retrato nítido de uma América Latina assombrada por ditaduras militares, ditadores megalomaníacos e golpes de Estado, “A festa do Bode” é, também, uma aula de caminhos que não podemos mais seguir enquanto sociedade, idolatrando facínoras e generais que tentam se mostrar conservadores, mas que são em essência podres, falsos e corruptos. Quando puder, faça com que esse livro fure todas as filas e mergulhe na realidade crua de heróis de uma República Dominicana presa por um ditador megalomaníaco e sanguinário.
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regifreitas 26/02/2020

A FESTA DO BODE (La fiesta del chivo, 2000), de Mario Vargas Llosa; tradução Wladir Dupont.

Neste romance, Llosa nos apresenta um panorama da ditadura comandada por Rafael Leónidas Trujillo Molina, na República Dominicana. Misturando personagens históricos e ficcionais, o autor revive aquele que foi um dos regimes mais sinistros e sangrentos das Américas.

Estruturalmente, a obra segue três linhas narrativas. A primeira, no início dos anos 1990, é narrada por Urania Cabral, que retorna ao país após um longo exílio de mais de trinta anos nos EUA. Filha de um dos mais célebres apoiadores da ditadura de Trujillo, ela aproveitara uma bolsa de estudos em Nova York para fugir do regime, nunca retornando ao país, e se negando a qualquer contanto com a família durante todo esse tempo. Essa volta, no entanto, para visitar o pai doente e inválido, reviverá velhos fantasmas e traumas do passado, nunca superados. A segunda linha acompanha um dia da vida do ditador, do amanhecer até o final do dia, quando se prepara um atentado contra a sua pessoa. Aqui temos uma visão de dentro do círculo do poder, de um líder ao mesmo tempo venerado, odiado e temido. A última linha narrativa segue os conspiradores que planejam o atentado contra o Bode (código para designar Trujillo), com breves pinceladas das histórias pregressas dessas pessoas, até aquele momento, que poderá redefinir os rumos do país.

Fiquei um pouco perdido no início da leitura, com as linhas narrativas e a quantidade de personagens, mas conforme os fatos vão se sucedendo, a estrutura proposta por Llosa vai se tornando mais clara. Creio que, não saber nada da história oficial da República Dominicana, ajuda bastante na fruição do romance. O autor consegue criar um clima de tensão crescente, principalmente na linha envolvendo o atentado a Trujillo. Desconhecer o desfecho torna os momentos que o precedem e o sucedem muito mais angustiantes. De resto, Llosa apresenta um retrato bastante notável daquele período, as atrocidades, os horrores e os efeitos de uma ditadura.
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Carla Verçoza 13/05/2021

Excelente!
Com uma mistura de história e ficção, Llosa entrega um livro bem escrito, bonito, forte e brutal, sobre a ditadura militar dominicana. O autor se utiliza de narrativas diferentes para ir montando brilhantemente a história, tudo muito bem interligado, nenhuma informação em excesso ou sem razão de estar no livro. O domínio do Llosa em transitar por diferentes épocas, personagens, estilos e fazer tudo funcionar no livro é bonito de se ler.
Para nós, brasileiros, é impossível não fazer uma relação com nossa história (inclusive com a atualidade). Chega um momento no livro em que fica quase impossível largar a leitura, recomendo demais.
Alê | @alexandrejjr 13/05/2021minha estante
A propaganda não era enganosa! Aí sim!


Carla Verçoza 13/05/2021minha estante
Não mesmo, muito massa, livro bom de ler.


Vinícius 13/05/2021minha estante
Llosao é bom demais (tirando o último dele que parece novela do Leblon ?)


Alê | @alexandrejjr 13/05/2021minha estante
Qual, Vinícius? O "Tempos ásperos"? Aliás, esse último romance dele tem ligação com "A festa do Bode"...


Carla Verçoza 13/05/2021minha estante
Hahaha. Credo.


Vinícius 13/05/2021minha estante
"Cinco esquinas". Num é ruim, é bonzinho até. Mas é "gente rica indo passear em Miami tomando champanhe, traições aqui e ali, que luxo!". Tem até uma história em paralelo boa mas é meio fraquinho.


Vinícius 13/05/2021minha estante
É... vi aqui e não é o ultimo, é o penúltimo. Errei por pouco.


Alê | @alexandrejjr 13/05/2021minha estante
Ah, sim. Já ouvi dizer que "Cinco esquinas" é o pior dele mesmo. O problema é que o "pior" do Llosa é o melhor de muita gente... ?


Vinícius 14/05/2021minha estante
é sim




Debora 21/07/2020

Tive que respirar antes de vir registrar minhas impressões
Vargas Llosa traça um panorama do fim da Era Trujillo na República Dominicana com uma maestria de tirar o fôlego. A leitura é muito fluida, mas não posso dizer que é rápida - pelo menos não para mim -, pois por vezes tive quer parar para respirar e para chorar. Ou tive que mudar de livro porque era noite e eu não queria ter pesadelos.
O autor vai intercalando os eventos dos últimos dias em 3 blocos de histórias, sendo o bloco conduzido por Urania Cabral (personagem fictícia), em princípio, o mais interessante, conduzido com uma forte ironia e uma narrativa entrecortada e densa.
No meio do livro toda a história já fica frenética e a vontade de ler e conhecer tudo logo é grande.
Neste livro, o autor mostra porque é considerado um grande autor, trazendo a tona um pouco da história latino-americana, pois, se Trujillo foi dos mais sanguinários ditadores da região, não foi o único. Não mesmo.
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V_______ 08/02/2022

A Festa do Bode
Mario Vargas Llosa cria uma obra marcante, juntando realidade e ficção para recontar um período histórico da República Dominicana, mas que se assemelha a história de muitos países da América Latina no século XX.
O livro é alternado em sua maior parte em três pontos narrativos, a volta de Urania à República Dominicana depois de anos onde confronta seu pai doente, ex-ministro e senador trujilista, por quem possui uma grande mágoa, os últimos dias no poder de Rafael Leônidas Trujillo Molina, o Bode, que foi ditador do país por mais de 30 anos, aterrorizando seus opositores e até mesmo seus apoiadores, e o ponto narrativo dos conspiradores no dia 30 de maio de 1961 e suas consequências.
Adorei a leitura, o autor faz um trabalho magistral, "cria" personagens maravilhosos e marcantes, nos faz imergir na história de modo que não seja interessante chegar apenas nos momentos de clímax no livro, mas hiatus entre esses momentos sejam tão compenetrados quanto os próprios clímax , e é nisso que se separa os grandes autores de todos os outros. A Festa do Bode é um livro excelente, que dá muito em que se pensar tanto no contexto humano quanto político e histórico. Vale a pena cada segundo de sua leitura.
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Janaina 23/07/2020

Um livro brutal e doloroso...
... do início ao fim.
Eu não gostaria de viver em um mundo onde livros como este não existissem, pq acho importante o registro desses tempos terríveis, acima de tudo, para que não nos permitamos sequer flertar com qq proposta de ditadura , mas é uma leitura pesadíssima.
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otxjunior 18/05/2022

A Festa do Bode, Mario Vargas Llosa
Na maior parte do longo tempo que levei para ler, não sabia quem era quem entre muitos personagens. O que não interferiu na história, cujo clímax recompensa. No fim, saí com uma impressão mais favorável ao autor do que à obra.
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Nanda Lima 02/04/2022

Incrédula
Uma vez li uma frase sobre 'Crime e Castigo', obra-prima de Dostoievski (e uma das leituras formadoras do meu caráter e gosto literário): não se lê Dostoievski para saber o fim do livro, mas para conhecer a si mesmo. E é uma frase que cabe para todos os grandes livros, os clássicos históricos ou os que já nascem clássicos, como este A festa do Bode.

Este livro me corroeu, me sequestrou, me hipnotizou de tal forma que fiquei obcecada por terminá-lo e incrédula pela profundidade literária, apesar da prosa tão direta e sem floreios do Llosa. Claro, li uma tradução. Mas, mesmo assim, creio que seja uma excelente tradução. Llosa tem um domínio tão absurdo de sua sofisticação que chega a parecer fácil escrever assim...

E, mais, a obra dialoga profundamente com a situação política atual do Brasil, especialmente no que se refere a essa figura patética, vaidosa, doente por adoração e pelo poder que temos na presidência atualmente.
Livraço!
Alê | @alexandrejjr 04/04/2022minha estante
Pois é! Livraço! Em tempo: realmente, é muito triste que nós temos o nosso próprio Bode...


Riamma 21/04/2023minha estante
o Bode do Brasil no caso é o Lula, né?




Ludmila 18/08/2021

Não sei o qie aconteceu com a leitura desse livro. A história é ótima, a escrita também. Mas eu demorei muito pra acabar, fazia tempo que isso não acontecia. Cada página demorava uma eternidade...
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Toni 28/04/2021

Pelo menos o bode morreu
Segundo livro de Mário Vargas Llosa que leio. Excelente leitura, ainda mais pelo atual momento político do Brasil. Impossível não traçar um paralelo com nosso passado e até mesmo com o triste presente.

A Festa do Bode é uma mistura de ficção com história. Porém, a maior parte dos acontecimentos realmente ocorreu. O escritor peruano conta tudo de uma forma cativante, intercalando os diferentes momentos e personagens.

Super recomendo.
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Lucas 30/01/2023

Jornalístico, ficcional, histórico e visceral: a República Dominicana como síntese de toda a América Latina
Como um país com área equivalente a cerca de metade do Estado de Santa Catarina, menos de dez milhões de habitantes, incrustada na ilha de Hispaniola junto com o Haiti no Caribe pode servir como pano de fundo de um dos melhores livros de um vencedor do Prêmio Nobel de literatura? Tirando o fato de ter sido escrito pelo peruano Mario Vargas Llosa (1936-), o leitor mais desavisado poderia inicialmente desconfiar de um livro com essa proposta.

Mas essa desconfiança virará pó rapidamente. Basta que o leitor leia algumas dezenas de páginas de A Festa do Bode (2000), ambientado na República Dominicana e tendo como escopo a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo Molina (1891-1961). Usando sua origem jornalística e misturando isso a uma inigualável capacidade narrativa, Llosa (vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 2010, um dos seis latino-americanos laureados com o prêmio e o único ainda vivo) constrói um livro que descreve uma história real com pontuais elementos ficcionais.

A ficção recai sobre Urania Cabral, protagonista feminina da obra e filha de Agustín Cabral, ex-senador e ex-ministro de Trujillo. Urania, que abarca consigo o primeiro dos três núcleos narrativos do livro, está voltando à República Dominicana por volta do ano de 1996, trinta e cinco anos depois da queda do ditador. Agora uma mulher de 49 anos, dona de uma carreira profissional de sucesso, ela regressa ao seu país carregada de amargura e ressentimento. Ao visitar seu pai, inválido e acamado, ela destila um ódio incomum, mas que aos poucos vai se mostrando justificável.

Obviamente que tais justificativas são derivadas da ditadura de Trujillo e é para lá que Mario Vargas Llosa nos leva nos núcleos seguintes. Primeiramente, o narrador "acompanha" o ditador em mais um dia de trabalho: na verdade, o derradeiro dia de sua vida, o histórico 30 de maio de 1961. Neste sentido, Trujillo encontra-se com vários personagens reais, como o chefe do Sistema de Informações Militares, coronel Johnny Abbes García (1924-1966 ou 1967), sádico comandante do sistema de repressão do regime; o "presidente fantoche" Joaquín Balaguer (1906-2002), discreto e manipulado por Trujillo; e o senador Henry Chirinos, conhecido como "Imundície Humana" ou "Constitucionalista Bêbado", caricato e grande orador. Através de diálogos com estes e outros personagens, o leitor conhece a personalidade do "Chefe" ou "Benfeitor" ou "Generalíssimo" Rafael Trujillo, sua animosidade e comportamento selvagem e inescrupuloso. Até então um aliado de primeira hora dos Estados Unidos na região do Caribe (especialmente em função do seu ódio aos comunistas, diga-se aos cubanos, que tinham acabado de instaurar um regime de esquerda), a força e amparo político de Trujillo no livro já são coisas do passado. Naquele momento, ele enfrentava sérias crises de apoio em função de várias temeridades por ele cometidas, como o brutal e oficialmente inexplicável assassinato das três irmãs Mirabal em 1960, as quais eram oposicionistas do regime. Estes e muitos outros eventos anteriores são comentados nos desdobramentos desse núcleo do ditador: a República Dominicana é um país com uma história brutal.

Em contraposição a Trujillo, há o terceiro núcleo narrativo: o dos revoltosos, que arquitetaram o assassinato do algoz ditador na supracitada data. Neste contexto, o autor nos leva para dentro de um dos carros que serviriam para eles assassinarem Trujillo numa emboscada. Basicamente são quatro os personagens principais: Amado "Amadito" García Guerrero, Salvador "Turco" Estrella Sandhalá, Antonio Imbert e Antonio De La Maza, todos eles descritos isoladamente, inclusive no que tange aos motivos individuais para aderirem a este movimento. Aqui, vale um adendo que se mostrou útil a quem não sabia muita coisa dos desdobramentos dessa execução, como este que escreve: é sensato que o leitor não procure saber o que houve após o assassinato, pois isso pode afetar o encanto que a descrição de Llosa causa.

Até mais ou menos o capítulo 12 (o livro possui 24 capítulos), a divisão é muito clara entre eles, seguindo a sequência Urania – Trujillo – revoltosos. Depois, essa simetria se perde e o livro fica (ainda) mais cinematográfico. Não é segredo para ninguém a morte do ditador, mas a República Dominicana entra em ebulição: intrigas políticas, sevícias, desdobramentos, etc., é tudo construído a partir de um narrador intenso, capaz de misturar crueza e poesia num simples parágrafo. É lúdico, incrível e fragmentado (este um dos traços característicos de Llosa), sem ser confuso ou abalar o ritmo.

Este núcleo dos revoltosos, apesar de não receber o foco de protagonismo do livro (este cabe à Urania Cabral e seus conflitos não resolvidos), é o mais significativo d'A Festa do Bode, pois deslinda praticamente todos os predicados de uma ditadura. Historicamente falando, há uma tendência quase generalizada de se tratar o regime de Rafael Trujillo na República Dominicana como um compêndio preciso das muitas experiências similares implantadas na América Central e América do Sul ao longo de todo o século XX. As torturas, as perseguições, as censuras, os processos judiciais capengas, as prisões políticas, a influência da comunidade internacional (diga-se dos Estados Unidos e sua volatilidade em relação ao regime totalitário de acordo com interesses próprios), eleições fraudadas, um canhestro culto à personalidade de algum herói supremo... Tudo isso e muito mais ocorreu na República Dominicana, mas também se viu em pelo menos uma dúzia de latino-americanos praticamente no mesmo período. A diferença é que os dominicanos vivenciaram isso tudo num outro patamar: até mesmo o mais informado leitor sobre ditaduras e seus modus operandi ficará chocado com o nível de radicalização do trujillismo.

Além dessa questão histórica, o livro frisa a política como ciência fascinante, apesar dos inegáveis fins difusos pelas quais ela se sustenta. Uma faceta em especial é a relação de indivíduos com oportunidades: a ocasião não necessariamente faz o ladrão, mas é a alavanca capaz de impulsionar tipos então comuns a posições de destaque dentro de uma nova hierarquia. Ser político é dominar a arte da espera, mas em A Festa do Bode, se reforça a capacidade de ação quando a hora chega. Nestes momentos, a inteligência fina, a discrição, a capacidade argumentativa podem ser armas mais poderosas que tanques ou dedos em riste. É intelectualmente admirável, mas moralmente execrável, como nós brasileiros bem sabemos.

Na esfera histórica e social, a leitura torna nítida ao leitor não só os aspectos "presentes" de um regime ditatorial, marcados pela opressão e corrupção generalizada, mas também o "depois": os reflexos de um regime autoritário, e no caso dos dominicanos isso é ainda mais acentuado dada a influência que Trujillo tinha, são capazes de reverberar por muitos e muitos anos depois da sua queda. Seres humanos destruídos e traumatizados normalmente são o maior legado das ditaduras sangrentas. Cobertas pelo véu de um discurso nacionalista e de defesa de interesses pátrios, atrocidades inomináveis são e foram cometidas. Defender a democracia, nesse caso e apesar de todos os seus problemas, não é simplesmente concordar com o direito a voto, mas sim proteger a sociedade destes danos, garantindo com que o futuro seja mais harmonioso e inclusivo.

Tais atrocidades aqui podem ser vistas na ficção, que se restringe à Urania Cabral e familiares, onde Vargas Llosa tampouco deixa a desejar. Por mais que certos detalhes não possam ser ditos, é angustiante acompanhar a história desta personagem, através de monólogos e diálogos que misturam passado e presente. Seus traumas aparentemente se mostram originários de facetas imaturas de sua personalidade, esnobismos de uma pessoa que venceu na vida e renega sua origem. Mas aos poucos sua figura vai sendo avaliada mais de perto e com a lupa narrativa do autor vemos que as cicatrizes de Urania são extremamente profundas... Tão profundas que o leitor poderá sentir-se com remorso por ter lhe ocorrido percepções tão primárias acerca de tanto dano. Urania Cabral, apesar de ser construída com o claro propósito de protagonizar A Festa do Bode, não é uma mulher inesquecível, uma heroína com ideais populares, capaz de aglutinar outros personagens em função do seu encanto. Mas ela é o maior símbolo do que Llosa parece ter desejado com a obra: mostrar os efeitos óbvios, individuais e ocultos de um regime ditatorial, que não se cansa de agir como numa distopia para operar e influenciar quem quer que seja.

Tudo isso está contido na "festa" do "bode" do título: ficção, história real, jornalismo e até traços distópicos. Sob qualquer uma destas vertentes, a história de Trujillo e seu domínio nefasto na República Dominicana concebeu, através das mãos de um gênio chamado Mario Vargas Llosa um livro notável, com uma grande capacidade de reflexão, entretenimento e informação histórica: sem o encantamento mágico e fantástico que tão bem caracteriza essa literatura, A Festa do Bode é uma das melhores obras latino-americanas do século XXI.
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Matheus Redig 03/04/2024

Romance histórico com múltiplos pontos de vista
?A Festa do Bode? narra em linhas temporais distintas os acontecimentos em torno do assassinato de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana que governou o país de 1930 a 1961.

Para além da evocação histórica e do libelo político, destaco nesta obra o multiperspectivismo, técnica ficcional que Llosa domina feito poucos. Cada capítulo é governado pelo ponto de vista de um personagem (a filha de um político trujillista, um dos assassinos, o próprio Trujillo, o capanga torturador de Trujillo etc), e às vezes de dois ou três.

Arte é a forma conjugada ao conteúdo, é o estilo que se liga ao tema, de modo que pareçam indissociáveis, ?nascidos um para o outro?, substâncias da mesma carne. Dessa maneira, a vigilância e a violência nos tempos de Trujillo são magistralmente revelados por esse entrelaçamento de olhares que Llosa desenvolve com uma objetividade plástica, ao modo flaubertiano.

Lanço mão do clichê: é preciso ?ter estômago? para as cenas de torturas bastante gráficas. Todavia, longe de ser apelativo ou gratuito, o terror que a obra nos traz deriva da ilusão de autonomia e de necessidade que as grandes criações ficcionais proporcionam ao leitor maduro. (Cf. Poética do velho Aristóteles, mestre de todos nós).

Talvez alguns se incomodem com a falta de fidelidade histórica em certas caracterizações ou com a violência inescrupulosa em certas cenas. Enganam-se, no entanto, por focar em elementos que são apenas instrumentais. Pois o coração do livro é a genuinidade do mundo que Llosa criou, um mundo cheio de medo, sangue e esperança.
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Rogerfelix 19/08/2009

Realidade crua...
O poder e seus personagens, a crueldade que assume o Governo Militar na Republica Dominicana e nas américas. Morte,crueldade, ganância e abuso, tão comum ao militarismo e tão próximo do Brasil.
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