Ricardo Rocha 25/05/2016
dias e noites com faulkner - 3. santuário
santuário é o grande sucesso e o grande fracasso de faulkner. sucesso porque foi em sua obra, ao menos ao longo de sua vida, o que mais se aproximou de um livro bem vendido. fracasso porque ao se dispor a escreve-lo queria fazer apenas um bom romance policial e definitivamente santuário não é isso, é mais que isso. eu cá comigo tenho a ideia de isso aconteceu em parte por causa do manuscrito ter sido primeiramente rejeitado pelo editor, que devolveu-o a faulkner para que ele fizesse uma revisão e tirasse as partes mais sombrias, que, segundo o editor, chocaria demais e traria problemas. faulkner fez a tal revisão (embora não dá pra saber exatamente o que ele tirou do texto, que tem toda sorte de violência, sensualidade (de todo tipo), incorreções políticas. não dá sequer para dizer que é um romance escrito de forma convencional, e sequer com certas facilidades do anterior "Enquanto agonizo" (cujos monólogos anteriores são capítulos com nome e sobrenome). aqui, os pontos de vista são diversos mas é preciso descobrir. entre os capítulos (se é lícito chamar assim) muita coisa acontece mas o problema é que não estão escritas, apenas se deduzirá pela sequencia e as circunstâncias. e com tudo isso ainda é um romance totalmente inteligível por qualquer leitor. porque faulkner antes de tudo é um grande contador de histórias e quem as ouve tem o direito de entender, ou ao menos ter base para acreditar que sim. de quebra, introduz uma de suas melhores personagens femininas, Temple. Assim, o que era para ser "apenas" um romance policial se tornou um estudo do mal, com direito a toques de tragédia grega, e Temple, que era para ser "apenas" uma vitima, termina por, digamos, contaminar e vitimizar todo o mal a seu redor. e o protagonista Horace termina quase secundário, pelo poder de temple e do, digamos, malfeitor. aí quando você está esmagado por tanta decadência, e desvios, vc le o discurso de faulkner ao aceitar o nobel, e passa a sentir necessidade de ver outra mensagem nas entrelinhas. assim, termino essa resenha com um trecho do discurso e abaixo uma das passagens mais violentas do livro:
o homem triunfará. É imortal porque ele tem uma alma, um espírito capaz de compaixão e sacrifício e resistência. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É seu privilégio ajudar o homem a resistir erguendo seu coração, recordando-o a coragem e honra e esperança e orgulho e compaixão e piedade e sacrifício. (do discurso do nobel)
Temple e seu pai continuaram, indo além do tanque onde algumas crianças
e um velho que envergava um surrado sobretudo marrom faziam navegar barcos
de brinquedo. Penetraram de novo sob o arvoredo e sentaram-se. Imediatamente
surgiu uma velha com decrépita presteza e cobrou quatro sous. No pequeno
pavilhão, uma banda em uniformes cujo azul se parecia com o do exército, tocava
Massenet e Scriabine, e Berlioz como se fosse um sutil extrato do torturado
Tchaikovsky, enquanto a luz descia dos ramos, dissolvendo-se em raios úmidos,
iluminando o pavilhão e os sombrios cogumelos representados pelos guardachuvas.
Generosos e altissonantes, os barulhos ecoavam no espaço para ir morrer
no crepúsculo verde, estendendo-se sobre eles em ondas harmoniosas e quase
melancólicas. Temple bocejou por detrás da mão, depois tirou da bolsa o porta-pó e
abriu-o. Nele viu refletido um rosto taciturno, descontente e triste." (fragmento de santuário)