Piter 26/11/2023
"Tudo vai ser engolido pelo oblívio"
Nunca tinha entrado em contato com obras literárias que tivessem consigo elementos da mitologia de Lovecraft, então é a minha primeira vez. Poderia ter ido direto à fonte, porém o título e a capa desse exemplar me capturaram espontaneamente. A premissa também me chamou atenção. Não me arrependi nenhum pouco.
Foi uma leitura imersiva e perturbadora. Já conhecia alguns aspectos do horror cósmico lovecraftiano, mas aqui pude me engajar de verdade, ao ponto de achar fascinantes as descrições trazidas, as referências e todo o resto que foi apropriado desses mitos escatológicos. Parabéns ao autor, pois garantiu mais um interessado - e talvez fissurado - fã dos Antigos e sua história.
Alexandre nos leva para a mesmerizante e aterradora Arkham, já habituada para quem lê os contos de H.P. Em primeiro lugar, que ambientação sensacional. É excitante a forma como os mistérios são colocados, a cidade aos poucos dissecada com seus problemas, pessoas esquisitas, segredos subterrâneos e o culto secreto. A presença das construções de arquitetura gótica como o hospital, a universidade e a igreja me fisgaram sem precedentes. Senti o suco dos anos 90 dentro das páginas, embora a temporalidade do enredo seja um pouco ambígua - aspecto que instiga ainda mais quem lê.
Desde o começo, a obra se mostra estimulante, apresentando um protagonista com um buraco existencial e um passado trágico. Foi legal perceber as mudanças que ele ganhou ao longo da trama. Tem um arco fechadinho, de um homem apartado do seu meio para um cidadão que retoma seus objetivos. Acho que a trama dá um protagonismo meio exagerado a ele em trechos finais, mas de modo consistente.
A representatividade de instâncias culturais, linguísticas e ambientais do Brasil está contida no texto, e se mistura de maneira complementar e coesa com os estrangeirismos e termos em Inglês.
Quanto aos outros personagens, a obra me surpreendeu ao abordar algumas partes sob o ponto de vista deles, pois esperava que a narração fosse reduzir à de Adam. Cada um tem seu tempo de cena necessário e coerente. Amanda é um ótimo apêndice da narrativa, assim como Marcos, com sua arrogância, Albuquerque - intelectual blasé que desconfiei até o desenlace -, Juliana, meio perdida mas também com seu devido lugar, Pedro - cuja amabilidade infantil me cativou -, e até as outras figuras menos aparentes. Rogéria ocupou bem seu papel na pele da mística enigmática. Pude imaginar a dona da livraria muito bem em seus trajes whimsygoth.
Todos têm uma dinâmica de cenas muito daora, apesar de alguns diálogos terem parecido meio redundantes. Os alívios cômicos funcionaram em várias partes, em outras, só estavam ali (e talvez tenham funcionado com outros leitores, vai saber).
A escrita de Callari é sucinta e objetiva. Pontos de destaque são as descrições muito detalhistas, o horror gore e os fluxos de consciência - que não se delongam e nem são tão filosóficos como vemos em outras obras, assumindo a dose certa. Definitivamente amei os trechos narrados por um personagem que, futuros leitores verão, é o principal antagonista. Ali a linguagem assume outros campos, vemos a magia do jogo das palavras, da sintaxe e da escolha lexical. Algumas passagens me marcaram de maneira profunda. Nas cenas da batalha final, pude ter de volta o gosto de trechos de ação sinestésicos e muito bem descritos, reforçando o tempo todo a escatologia do momento.
[spoilers]
Meu ponto negativo está no instante onde o Adam invade o território daquela raça antiga. O trajeto ali foi rápido demais e não teve como ser aproveitado em todo o seu potencial. Ficou um pouco “fácil” em demasia tirar a criança de lá. Parece que o perigo não foi “perigoso” o suficiente, sabe?
[fim do spoiler]
Enfim, “A Floresta das Árvores Retorcidas” trouxe diversão, temor, aflição e alguma poesia apocalíptica em seu desfecho. O design gráfico é incrível. Imagens horripilantes que passam uma sensação de desconforto e horror visual assertivos. Uma diagramação a qual remonta a ideia de que estamos lendo um livro ancestral, quase como se simulasse a própria Bíblia, onde o corte frontal é do mesmo tom de vermelho do tomo religioso. Não se trata de uma leitura veloz, mas vale bastante a pena.
“E os ratos saíram. E as moscas. E as baratas. Saíram de seus lares sob as lixeiras de rua, saíram dos esgotos, saíram das moitas, saíram de todo e qualquer esconderijo e, caso lhes fosse permitido refletir a condição humana, teriam sorrido, pois, mais uma vez, seu mestre caminhava pelo mundo”.