Lucas 18/06/2017
É para frente que se olha, é para o leste que se anda
As Duas Torres dá sequência ao desenvolvido em A Sociedade do Anel, que abre a história d'O Senhor dos Anéis. Por ser a parte central da saga, é um livro, literalmente, sem um começo e um fim: a ideia de continuidade prevalece até a última linha. Algo que o diferencia radicalmente do seu antecessor também é a divisão de núcleos narrativos: com o fim da Comitiva do Anel, dividida ao fim do primeiro livro, a história recomeça com uma expansão maior da Terra Média e o aprofundamento de questões externas ao chamado Um Anel.
Ao expandir esse mundo tão rico, com a narrativa inicialmente se deslocando (os mapas presentes em boa parte das edições são essenciais aqui) ao centro da Terra Média, mais uma vez o leitor constata a genialidade criativa de Tolkien. Com menos filosofia, mas com uma nova imensidade de seres carismáticos, guerreiros e com grande senso de companheirismo, as páginas transbordam de diálogos, situações perigosas e aventuras, que prendem qualquer tipo de leitor. Em meio a isso, a narrativa de Tolkien reserva certos traços humorísticos, também presentes na primeira parte da saga. É louvável nesse contexto, por exemplo, a amizade do elfo Legolas com o anão Gimli, filho de Glóin, cujas ambas as raças são vistas como rivais (outras obras de Tolkien podem explicar essa rusga existente entre elfos e anões). Por mais que a ameaça de Sauron e o escuro esteja cada vez mais próxima, Tolkien consegue manter o humor leve em momentos oportunos, especialmente nos diálogos durante as cavalgadas ou acampamentos do que sobrou da Comitiva do Anel.
Mas, em meio aos poucos momentos de riso, a tensão e por vezes o drama são as sensações mais percebidas na obra. Os vilões, Saruman, o mago traidor e Sauron, o Senhor do Escuro, são mais bem desenvolvidos. Saruman, inclusive, protagoniza um dos momentos mais espetaculares de toda a saga (possivelmente), juntamente com Gandalf. Sim, o Mago Cinzento, de fato está vivo, o que não deve ser muito surpreendente, já que até quem não é fã de fantasia poderia supor que um personagem tão fundamental e popular de toda a obra não fosse sucumbir já no início da jornada. No entanto, ele ressurge muito diferente: os traços que o tornam tão querido por todos ainda resistem, mas algo relacionado à sua disposição e até à sua aparência se altera. Ele sintetiza bem o que As Duas Torres representa: tudo de sensacional que havia em A Sociedade do Anel agora adquire um tom sombrio e misterioso.
Além disso, a história também se debruça sob a jornada ao leste, formada por Frodo e seu fiel escudeiro Sam. Com apenas a ideia de destruir o Um Anel na Montanha da Perdição, mas sem o conhecimento necessário para alcançar tal local, a dupla se vê diante de inúmeros perigos e mistérios em uma terra árida e sombria, Mordor. Nessa epopeia, os hobbit’s serão obrigados a confiarem em seres confusos e misteriosos, que podem ser traidores ou não. Esse aspecto obscuro e incerto é um dos grandes destaques da segunda metade da obra, culminando no desfecho absolutamente imprevisível e que prende a atenção até a última frase. É impossível, aliás, que os dois capítulos finais de As Duas Torres não sejam lidos de uma vez só, tamanha a sua carga dramática, cinematográfica e repleta de suspense, que serve como um pomposo insumo para que o leitor comece o quanto antes a leitura da última parte da trilogia.
Tolkien não gostava de ser rotulado de alegorista no que diz respeito aos rumos que suas histórias tomavam. Ele deixa claro em cartas e outros textos particulares que a sua obra nunca poderia ser entendida como um espelho da realidade. Talvez, de fato, é possível que durante a construção da sua obra-prima ele não tenha adquirido esse tipo de preocupação; todavia, é nítido em As Duas Torres a existência de uma grande semelhança com a realidade no que se relaciona a temas tão atuais, como a preservação do meio ambiente (digam-se, florestas) e das consequências maléficas que o desenvolvimento humano trás se não for acompanhado de sustentabilidade. É lógico que o futuro leitor não encontrará no livro manifestos explícitos em defesa do ecossistema, mas as entrelinhas assumem isso. Os Ent's, novos e valorosos seres que surgem na narrativa, resumem bem essa tendência, reforçando a tese de que exploração não deve ser confundida com devastação e o rompimento dessa barreira é capaz de alimentar ódios antigos e muitos conflitos.
As grandes batalhas, cujas adaptações são talvez o aspecto mais impressionante da trilogia cinematográfica, adquirem maior frequência em As Duas Torres, algo que deve também permear a jornada em O Retorno do Rei. Nesta segunda parte, boa parte do clima maior de tensão é explicado pela descrição dessas batalhas (como a do Abismo de Helm) e também por situações de fuga e marcha. Outra nuance da genialidade de Tolkien também é percebida nestes momentos: mesmo que o leitor não seja apaixonado por fantasias ou possua uma imaginação menos fértil ou mais prática, a descrição do autor sobre os confrontos permite que a atmosfera de tensão e medo envolvam fortemente quem está lendo. Assim, até mesmo os detalhes mais específicos presentes em uma batalha grandiosa não possuem nada de enfadonho ou cansativo, deixando a narrativa dinâmica mesmo em momentos onde a atenção aos pormenores é primordial à compreensão do que está se passando.
Assim, As Duas Torres pode ser entendido como uma "ponte", que liga o desafio proposto em A Sociedade do Anel ao seu possível cumprimento em O Retorno do Rei. É um livro onde, definitivamente, o "bicho" começa a "pegar" para personagens tão queridos como Frodo, Sam, Aragorn e os outros membros da comitiva original, no que diz respeito à proximidade com o escuro e o perigo, representados por Mordor. Desprovidos de poderes sobrenaturais, mas os maiores responsáveis pela manutenção da paz em toda a Terra Média, os personagens principais contam apenas com flechas, machados e espadas para combater essa enorme ameaça. Mas a amizade e o companheirismo unem tudo isso, em um esforço cujo desfecho deixa o leitor ansioso para O Retorno do Rei, que finaliza a saga.