willian.coelho. 16/04/2021
Quadrinho com valor literário e cultural
A edição definitiva de Sandman - lançada pela Panini - conta com 5 volumes (75 fascículos), sendo o primeiro composto pelos três primeiros arcos (Prelúdios e noturnos [1 ao 8], A casa das bonecas [9 ao 16] e Terra dos sonhos [17 ao 20]). Gaiman, certamente, ao lançar sua obra pelo selo Vertigo, da DC Comics, pôde dar profundidade narrativa ao texto, já que o mesmo é destinado a adultos. O autor, na verdade, é considerado um dos expoentes dos gibis maduros, uma vez que foi um dos inauguradores do selo (artistas da invasão britânica). Nesses primeiros arcos, o tom do enredo é definido (sarcástico, intelectual e fantasioso), bem como sua personagem principal - Sonho, uma entidade que controla o sonhar - ganha forma.
“Prelúdios e noturnos” narra o aprisionamento do Sonho por uma organização esotérica, na tentativa de capturar a Morte, e a busca por teus utensílios, após se livrar dos captores (7 décadas mais tarde). Alguns pontos de destaque são: a paciência do protagonista em se libertar do cativeiro (demonstrando coerência literal, dado que ele é imortal); a ida ao inferno, com a ilustração deveras criativa de criaturas dessa dimensão; o sadismo do Dr. Destino (resultando em um dos episódios-ápice do arco [“24 horas”]) e a contextualização da Morte (culminando em um volume soturno [“O som de suas asas”]). No entanto, o uso de outros personagens da DC, como os da Liga da Justiça, e o clichê das “ferramentas de herói” parecem destoar da trama.
“A casa das bonecas” conta a história do Sonho perseguindo alguns habitantes que se evadiram do sonhar, enquanto outro eixo demonstra uma menina tentando resgatar seu irmão mais novo e, ao mesmo tempo, sendo uma ameaça ao mundo dos sonhos. “Homens de boa fortuna” (com seu enredo histórico e filosófico) e “Os colecionadores” (com seu humor tão áspero que beira o ofensivo) são o apogeu do arco. A trama principal, contudo, é demasiadamente morna, apresentando uma ameaça frívola com um desfecho tosco. Ademais, o “jeito” que Gaiman deu de tangenciar e eliminar os Sandmans originais foi raso e desnecessário.
“Terra dos sonhos” é composto por ótimos 4 fascículos sem enredo conectado: “Calíope” traz referências à cultura greco-romana em uma intriga envolvendo abuso sexual e devaneios por sucesso; “Um sonho de mil gatos” faz alusão ao berço africano da espécie humana, onde os primeiros humanoides eram presas; “Sonho de uma noite de verão” é uma adaptação da comédia de mesmo nome de Shakespeare (interpretada pelo próprio); “Fachada” tem uma temática psicológica e existencialista. Talvez não tenham as exacerbações narrativas de “Os colecionadores” ou de “24 horas”; é, entretanto, aqui que a série não parece oscilar: todos os números são sublimes e originais.
Indubitavelmente, o fator preponderante que torna os quadrinhos infantis de super-heróis maçantes é a previsibilidade. Em Sandman, o protagonista principal parece não receber ênfase excessiva, dando ao texto infindáveis possibilidades, há substancial unicidade. É facilmente perceptível que os roteiros em que Sonho toma para si o papel de ator soberano são os mais frágeis, enquanto que aqueles em que age como um fenômeno modulador do rumo da história são os melhores. Os diálogos - às vezes acres, outras poéticos - contribuem demais para o peso literário (tudo ter sido escrito pelo mesmo escritor favoreceu o conteúdo). Para finalizar, o volume 1 da edição definitiva de Sandman, que compila os 3 arcos iniciais, apresenta altos e baixos, porém talvez os segundos só sejam percebidos assim, dado a genialidade dos primeiros.