Andreza 12/06/2024Resenha difícil de se fazer, livro que precisa de tempo para digerir. A escrita é lindissima, coisa que valeria a pena ler qualquer história. Mas a história contada deixa tudo ainda mais primoroso, é um livro onde se junta a sutileza e grandeza. Os personagens são complexos e estão longe de serem santificados pela história, mas faz a gente pensar e repensar sobre a realidade do nosso país e pensar ?como poderia ter sido se não fosse assim??. E é difícil ter respostas concretas, porque a realidade do ?e se? possui vários caminhos, mas eram (são) crianças que nunca tiveram a oportunidade de viver a idade, e pensar que com mudanças elas poderiam ter a possibilidade, poderiam ter essa oportunidade, é de partir o coração. no mais é um livro pra ser lido de mente aberta, coração aberto. ?
?Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. Era como um hóspede, era como um hóspede querido. E fumando o seu cigarro escondido (o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar), o Sem-Pernas pensa sem compreen-der. Não compreende nada do que se passa. Sua cara está franzida.
Lembra os dias da cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca deixaram de persegui-lo. E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não sabe mesmo por quê, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que ele é um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá levar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no seu coração. Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver. E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das mãos do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para consigo.?
Esse trecho é ARTE!