mpettrus 21/02/2024
O Fim da Vida é Uma Longa Noite Sombria
?E então passam a uma velocidade de vertigem os rostos que admirei, os rostos que amei, odiei, invejei, desprezei. Os rostos que protegi, os que ataquei, os rostos de que me defendi, os que busquei em vão.?
??Noturno do Chile? é um romance de caráter biográfico escrito pelas mãos do escritor chileno Roberto Bolaño. A obra é um relato em primeira pessoa, feito por seu protagonista, o padre, poeta e crítico literário Sebastián Urrutia Lacroix, que está em seu leito de morte quando decide contar sua história e rememorar ?os atos que o justificam?.
?O Padre, na hora de sua morte, recorda de sua vida, o peso da cruz que carrega no nome que o ?predestinou? à vida religiosa e que é agora o peso de sua consciência, sendo vítima de seus próprios vícios e pecados, que retornam em forma de culpa, a cruz que terá de carregar até o fim próximo, pois já não há tempo para se arrepender e se salvar.
? Esse curto romance de pouco mais de 100 páginas, aborda o ?Estado de Exceção? no Chile pela perspectiva dos vencedores, os algozes da ?Era das Derrotas?.
Seu narrador, o Padre, é membro da elite religiosa e intelectual chilena, sendo o extremo oposto dos militantes e intelectuais de esquerda reunidos em torno da Unidade Popular que deram apoio maciço à candidatura de Salvador Allende como Presidente do Chile.
? Essa história é um acerto de contas que Bolaño faz contra a Instituição Católica que apoiou a ditadura de Pinochet. O Papa João Paulo II chegou a considerar August Pinochet e sua esposa como o casal católico modelo ?
O Padre era membro do Opus Dei, expressão que em latim significa ?Obra de Deus? ? fundada pelo sacerdote espanhol Josemaría Escrivá em 1928, que era simpatizante da ditadura implantada na Espanha por Francisco Franco, além de ser seu confessor e de diversos ministros durante a ditadura.
? No decorrer da narrativa, conhecemos diversos personagens. Personagens que trazem algumas peculiaridades interessantes. Farewell, figura típica do intelectual latino-americano ligado ao poder e que serve ao poder, é companheiro e interlocutor do Padre durante todo o romance.
Farewell, dono de terras, maior crítico literário do país, realizava em sua fazenda festas com padres, poetas, jovens e membros da alta burguesia.
? No início do romance, o Padre diz ter a ingenuidade de um passarinho, enquanto Farewell, posto como seu aliciador, configurando uma justificativa para seus atos, é anunciado como uma ave de rapina.
Aqui se nota o uso da alegoria, que se desdobra em outros momentos da narrativa: os falcões e os pombos, a violência cega e a vida pacífica, não regida pelo medo.
? Outro momento de alegoria usada por Bolaño é quando nos é apresentada uma dupla que aparece na vida do narrador: Odem e Oidó. Ele não só fez uso da alegoria na sua forma mais pura, mas também se utilizou de anagramas para constituí-los. Os nomes dos dois estranhos personagens se lido de trás para frente nos revelam as palavras ?Medo? e ?Ódio?.
? Simplesmente fiquei boquiaberto com a genialidade de Bolaño. Existe aqui também uma metáfora em relação a essa dupla misteriosa que pode ser interpretada como a representação dos sentimentos do narrador dentro do contexto político da ditadura chilena.
? Embora seja um romance curto, não se enganem: a história apresenta episódios importantes para entendermos a jornada do Padre durante a sua vida.
São quatro as histórias principais que ele recorda no seu leito de morte: o primeiro encontro com o seu mentor, Farewell, que testará os seus talentos literários e sexuais; a viagem à Europa com a missão que lhe foi confiada pelos seus superiores para tentar salvar a decadência das igrejas históricas ameaçadas pelo cocô de pombo; as nove lições marxistas dadas a Pinochet e seus generais e as reuniões literárias na casa de María Canales, casa cujo porão foi secretamente usado pela polícia secreta para prisões e torturas.
? Estas quatro histórias, sutilmente interligadas, oferecem não só uma imagem dramática da literatura chilena sob a ditadura, mas também uma imagem dramática do comportamento do intelectual sob o terror.
A narrativa de Bolaño é extremamente visual e performativa (luzes, gestos, diálogos, silêncios), onde as suas personagens habitam os espaços exatamente como se estivessem dentro de uma ação dramática.
? A sala é o lugar onde o Padre se deita, chora, culpa os outros e dorme. O personagem e o espaço são constituídos como atos na palavra, eles não são descritos e ainda assim, você os reconhece você os visualiza você os materializa na sua mente.
Poucos escritores conseguem ter essa habilidade de nos contar muitas coisas em tão poucas linhas, em tão poucas páginas e se fazer entender e compreender.
Ler esse romance é como perambular dentro de um labirinto impossível de navegar sem compreender a história do Chile e de seu autor. Uma constante tensão que vem de uma narrativa poderosa atravessando as páginas, repleta de significados ocultos, levando a uma implosão realista e cínica de explicação.
? Essa história nos traz um dos monólogos mais incríveis que já li. O protagonista agonizando no seu leito de morte, nos revela como amou a própria existência, apenas para ?esclarecer certos pontos? duvidosos da sua vida nos tempos sombrios da ditadura chilena, justificando a infâmia e a mesquinhez ao seu redor.
? Para mim, esse monólogo é um testemunho da inevitabilidade do indivíduo na história. O Padre não se opôs ao regime, assumindo posições de conveniência, com covardes silenciosos, mas, no final, não passou de um homenzinho vil, sem as virtudes que ele tanto almejava para si.
?E a beleza poética da narrativa de Bolaño em um tema espinhoso como as ditaduras que varreram a América Latina nas últimas décadas do século XX foi primordial para a construção do monólogo do Padre, agonizando naquele quarto mergulhado numa penumbra morimbuda e nauseabunda, indo de encontro com a morte, desesperadamente buscando o perdão das vítimas para aplacar a culpa existente na sua consciência porque para ele, felizmente, muito felizmente, o fim da sua vida será uma longa noite sombria, tal qual foram para todas as vítimas da ditadura chilena.
? Hoje, compreendo porque para Roberto Bolaño poder construir a história de sua literatura de uma forma única e equilibrada com a sua própria existência, não poderia fazer sem contar a história de um país gravemente danificado pela ditadura como o é a história do Chile, a sua pátria amada e berço do seu nascimento existencial.
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