Fabio.Madeira 02/04/2018Uma confissão sem ouvintes...Nesta obra, o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) nos apresenta, por meio de uma narração em primeira pessoa da vida do padre, poeta e crítico literário Sebastian Urrutia Lacroix, uma visão dolorosa do período da ditadura chilena e das marcas que não se apagam.
Tudo começa como uma resposta do narrador a acusações feitas por uma figura misteriosa, chamada por ele de “jovem envelhecido”. Já na primeira página do livro, vemos Sebastian afirmar como somos responsáveis pelos nossos atos e palavras, assim como pelos nossos silêncios e que, no caso desses últimos, nunca escapam dos ouvidos e do julgamento de Deus.
Nesse momento, o autor nos prepara para o tema central da obra, as ações e, principalmente, as omissões em vida, que marcam a nossa existência.
Pelo monólogo, somos conduzidos em uma escrita sem pausa, passando pelos principais momentos da adolescência e da vida adulta do narrador, especialmente a sua inserção na vida literária do Chile, o contato com artistas e com o renomado crítico literário Farewell, que atua como mentor de Sebastian, em uma relação com forte natureza homossexual e, portanto, mais complexa ainda por envolver um padre.
Em paralelo, acompanhamos os acontecimentos antes e durante a ascensão ao poder do socialista Salvador Allende, em 1970, a sua queda pelo golpe militar em 1973 e a ditadura sob o comando do general Augusto Pinochet por quase duas décadas.
A escrita do autor é feita por meio de longas frases, em um ritmo frenético. Não há espaços para pausas e respiros, a urgência do narrador em construir sua “defesa” e manter a sua reputação preservada é o que move esse discurso febril.
As memórias do narrador oscilam entre momentos de clareza e de confusão, levando a devaneios e desvios na história, o que é natural e próprio da mente humana, ainda mais de uma tão atormentada por segredos como a de Sebastian.
No ponto mais importante de suas memórias, Sebastian relembra a sua colaboração com o comando militar. E aqui, chegamos a um ponto crucial da obra, e fonte das grandes angústias do narrador.
Por todo o livro, Sebastian parece demonstrar mais interesse em fazer parte do meio artístico e desfrutar dos benefícios de ser respeitado socialmente, do que em refletir e se posicionar moralmente nos meios sociais e políticos do país. Nesse desejo de prestígio, vemos o narrador acompanhar à distância e mesmo se omitir em momentos graves de violência, como na tomada do poder pelos militares e os atos posteriores.
Sebastian é convocado a treinar Pinochet e sua junta militar nos conceitos do marxismo e aceita com pouca hesitação. O objetivo do general era compreender os pensamentos e as intenções de seus adversários de esquerda, retirados do poder.
Ao término, Sebastian quer encontrar alguma forma de se justificar, porém sabe, em seu íntimo, que fez algo que condena. Deseja se confessar e, quem sabe, ter o perdão.
Ao final da ditadura, uma revelação chocante se dará a Sebastian, porém já é tarde demais para a absolvição.
O livro é marcado por uma escrita refinada, cheia de referências culturais. É notável, entretanto, que haja uma fina linha separando a audácia e os excessos no conteúdo, e a leitura não agrada em todos os momentos.
Embora seja um livro curto, sua leitura é densa, e o melhor é que você o leia de uma vez só, sem pausas. É preciso mergulhar nesse universo, a obra de Bolaño não foi feita para não provocar incômodos.
Um grande acerto do autor é fazer nos questionar, sutilmente, o que faríamos na posição do narrador. Podemos afirmar com certeza que agiríamos pelos nossos valores mais puros, em um mundo de trevas, medo e mortes constantes? Seríamos os mesmos ou criaríamos uma versão de nós, para nos mantermos vivos?
Apesar da narrativa complexa e de alguns excessos artísticos, a obra é única, um grito desesperado de libertação, mas sem plateia.