Alexandre | @estantedoale 25/06/2020
Viagem entre pandemias e empatias
"A doença, se é que era uma doença, tinha arrancado os vivos uns dos outros. Enquanto varria o país, as pessoas mal tiveram tempo de pôr a culpa nos soviéticos (embora eles estivessem silenciando junto ao resto do mundo), em um novo vírus, um novo poluente, radiação, justiça divina... A doença foi certeira no modo como derrubou as pessoas e como um derrame cerebral em alguns de seus sintomas. Mas era muito específica. A linguagem sempre era perdida ou severamente debilitada. Nunca era recuperada. Muitas vezes, também havia paralisia, debilidade intelectual e morte."
O trecho acima entrega o jogo. “Sons da Fala” é um conto de Octavia E. Butler em que Rye, a protagonista - uma mulher, como em todas as obras da autora -, vive em um mundo que sofre os efeitos de uma suposta pandemia. Nada muito distante de 2020, certamente. Relembra um bocado “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago; uma pequena mudança nos sentidos, mas quase nenhuma nas ações consequentes.
Rye está em um ônibus indo de um estado a outro dos EUA quando uma briga começa, o ônibus para e um dos poucos policiais que restam ajuda - ou tenta - a apaziguar uma discussão sem palavras, mas cheia de gestos obscenos. Sequelas de uma sociedade deturpada pela perca da voz e da cognição.
Naquele momento, o policial percebe que Rye não é qualquer pessoa atingida pela doença. Então, a convida a pegar estrada com ele. A princípio, quer levar a mulher para casa em segurança, mas depois de uma proposta sexual aceita e executada, eles pegam estrada juntos para serem justiceiros.
A velocidade muito bem aplicada dos acontecimentos dá ao conto as características que o inserem no gênero. Além, é claro, do principal diferencial: os personagens não falam. A comunicação não-verbal detalhada pela autora pede atenção aos detalhes, gestos e expressões de todos os personagens, nomeados ou não, em todos os momentos.
E, como em todas as histórias que já li pelas palavras desta mulher, lhe asseguro que o final é reconfortante e deixa centelhas de esperança causadas somente por uma palavra: empatia. Rye, que já havia desistido de tudo e pensava em tirar a própria vida, toma mais decisões importantes em um dia normal-anormal do que na vida toda e acaba decidindo sobreviver pela sobrevivência de outras pessoas.
Assim, Octavia, em poucas páginas, torna Rye uma pequena heroína desconhecida. A pessoa que qualquer um com um pouco de amor ao próximo e resistência pode se tornar.
Aproveitar uma pandemia para ler sobre outras possibilidades de futuro podem abrir nossos olhos. Devo aproveitar para ressaltar o que Caetano canta: “É preciso estar atento e forte”. O mundo real está sendo forçado a mudar, bem como os mundos criados por Octavia ou por Saramago.
Infelizmente, há quem se recuse a ver. Há quem se recuse a escutar e falar. E, ainda, quem esteja disposto a parar de sentir qualquer coisa por qualquer pessoa. A lição, no entanto, é que essa empatia pode ser um remédio mais eficaz que o isolamento ou a vacina. E pode ser praticada de diversas maneiras.
A pequena distopia de Octavia E. Butler pode ser lida gratuitamente no Projeto Cápsula, da Editora Morro Branco, onde também estão disponíveis outros contos gratuitos e marcantes para ler.
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