Henrique Fendrich 10/09/2019
FEBEAPÁ e a revanche do cronista
Embora só tenha vivido os primeiros quatros anos do regime militar no Brasil, pode-se dizer que Sérgio Porto se tornou o cronista daquele período – pelo menos entre aqueles que o combatiam. Afinal, é a ele, transfigurado em Stanislaw Ponte Preta, que se recorre para evidenciar o absurdo e o ridículo em que, invariavelmente, a ditadura (ou a “Redentora”) caia na tentativa de impor à nação “uma pseudomoral, em nome da hipocrisia”. Assim é que, tendo coletado um punhado de notícias impagáveis ocorridas pouco tempo após o golpe, Sérgio fez ver ao país que ele estava sendo assolado por um festival de besteiras. Publicou então um livro com essas pérolas, tão bem vendido que decidiu fazer outro, e depois mais outro, e a trilogia, sob o nome de “FEBEAPÁ”, se tornou um dos maiores clássicos da crônica, celebrada até os dias de hoje. Aliás, num tempo em que muita gente defende justamente a volta desse regime, o que torna esta nova edição, agora pela Companhia das Letras, ainda mais oportuna.
Com seu estilo divertido, gaiato mesmo, Stanislaw Ponte Preta nos conta episódios inacreditáveis daquele período, como o dos agentes do Dops que foram ao Theatro Municipal de São Paulo para prender Sófocles, autor de uma peça considerada subversiva, ou o de uma encíclica papal que foi recolhida de uma feira de livros sob a mesma acusação. O dedo-durismo rendia muitas notícias absurdas, e foi justamente ele a motivação inicial do Festival, graças às “cocorocas de diversas classes sociais” e às “otoridades” que buscavam prestígio pessoal.
Sérgio acompanha atentamente o noticiário, no que é ajudado por seus leitores, e, diante da impotência que sente ao ler “cada besteira de encabular dupla caipira”, se vinga da única forma que está ao seu alcance: debochando delas. Ao transcrever essas notícias, Sérgio acrescenta os seus próprios comentários, fazendo, dessa maneira, uma negação da retórica e do discurso oficial dos personagens, e revelando aspectos escondidos na matéria jornalística. É possível dizer que ele faz, de maneira irônica, o “aprofundamento da notícia”, que geralmente se atribui como característica da crônica. Seus textos evidenciam a relação indissociável com o jornalismo, muitas vezes negada pela literatura, e sem sofrer os prejuízos da temporalidade.
Afinal, as besteiras continuam assolando o país, mesmo em tempos de democracia, e faz falta um Stanislaw Ponte Preta para registrá-las em todo o seu ridículo. Mas há marcas do seu legado até os dias de hoje. Abordagens como a que José Simão faz do noticiário, embora de forma mais escrachada, certamente possuem origem em Stanislaw Ponte Preta. Até mesmo o sucesso de sites de notícias falsas como o “Sensacionalista” deve a sua porção ao cronista. A notícia inventada, afinal, é uma notícia “possível”, a serem mantidos os rumos absurdos que as notícias verdadeiras sugerem. Também ali se faz uma revanche diante da retórica do poder.
Além das notícias que coletava e comentava, Stanislaw preencheu os três volumes do FEBEAPÁ com crônicas propriamente ditas, todas ligadas de alguma forma ao tempo de sua escrita e marcadas fortemente pelo humor e pela oralidade. O cronista abusa das anedotas e salpica os textos de incríveis achados, divertidas comparações, engraçadas gírias e certeiras alfinetadas, na medida em que retreta pequenas histórias do cotidiano e conduz o leitor a um inusitado desfecho. Em tudo, sobressai a sua preferência pelos mais humildes, que, nem por isso, deixam de ser alvo de piadas – é possível que hoje algumas sejam vistas com restrições.
Stanislaw é um cronista singular, a começar por não ser exatamente cronista, mas um personagem, de modo que Sérgio Porto, o seu autor, abre mão da simples expressão do seu ponto de vista para buscar diferentes formas de refletir sobre a realidade. Essa ousadia de criar personagens e misturá-los à individualidade do autor não é algo muito comum à crônica (pode-se falar, talvez, apenas em Nelson Rodrigues, que também muito brincou de misturar a ficção com a vida real). Quando cria tipos como Stanislaw Ponte Preta, a Tia Zulmira, o Primo Altamirando (nefando parente), Rosamundo ou Bonifácio, o patriota, Sérgio Porto exagera as características de muitos de nós, e por isso faz mais do que divertir – também nos expõe.
Tudo isso é feito com uma desenvoltura narrativa notável, o que torna a leitura do livro extremamente prazerosa e justifica a sua inclusão entre os grandes livros do gênero.
SELEÇÃO DE BESTEIRAS
Foi então que estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça clássica Electra, tendo comparecido ao local alguns agentes do DOPS para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 A.C.
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O General Olímpio Mourão Filho doava ao Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, a espada e a farda de campanha que usava como comandante das forças que fizeram a ‘redentora’ de 1º de abril. Isso é que foi revolução; com pouco mais de dois anos já estava dando peças para museu.
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Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta à circular: ‘Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas'.
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“Repetia-se em Porto Alegre episódio semelhante ao ocorrido com Sófocles, em São Paulo. O Coronel Bermudes, secretário da insegurança pública, acusava todo o elenco do Teatro Leopoldina de debochado e exigia a presença dos atores e do autor da peça em seu gabinete. Depois ficou muito decepcionado, porque Georgers Feydeau – o autor – desobedeceu sua ordem por motivo de força maior, isto é, faleceu em Paris, em 1921.”
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“E quando a gente pensava que tinha diminuído o número de deputados cocorocas, aparecia o parlamentar Tufic Nassif com um projeto instituindo a escritura pública para venda de automóveis. Na ocasião, enviamos os nossos sinceros parabéns ao esclarecido deputado, com a sugestão de que aproveitasse o embalo e instituísse também um projeto sugerindo a lei do inquilinato para aluguel de táxis.”
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A Pretapress continuava trabalhando ativamente e colecionando novas notícias para o Festival de Besteira que Assola o País. E este ano começou tão bem que na Paraíba, o Prefeito da cidade de Juarez Távora nomeou para a Prefeitura local, como funcionário público, figurando na folha de pagamento, o cavalo ‘Motor’ de sua propriedade. Dizem que o cavalo do Prefeito João Mendes é muito cumpridor dos seus deveres.
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A Delegacia de Costumes de Porto Alegre mandava retirar das livrarias, sem dar a menor satisfação aos livreiros, todos os livros que fossem considerados pornográficos. Um dos livros apreendidos era ‘O amante de Lady Chatterley’ e, quando o delegado soube que o autor era súdito de Sua Majestade Britânica, mandou devolver todos os exemplares, explicando aos seus homens: ‘Nós não temo nada que ver, tche, com a pornografia inglesa. Só com a nacional, tche!’.
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Em Recife, quem tocasse buzina na zona considerada de silêncio, pagava uma multa de Cr$ 200. O deputado estadual Alcides Teixeira sabia disso mas distraiu-se e tocou. Imediatamente apareceu um guarda e multou-o. Alcides deu uma nota de Cr$ 1.000 para pagar os 200 e o guarda informou-o de que não tinha troco. O deputado quebrou o galho: deu mais quatro buzinadas na zona de silêncio, ficou quite com a Justiça e foi embora.
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Um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos no Brasil e o Itamaraty distribuiu uma nota avisando que os alemães só jogariam se a partida não tivesse cunho político. ‘Cunho político’ — explicaria depois o próprio Itamaraty, era tocar o hino nacional dos dois países que iriam jogar. Um dia eu vou contar isto aos meus netinhos e os garotos vão comentar: ‘Esse vovô inventa cada besteira!’”
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