Ricardo Rocha 10/01/2017
eu estava convalescendo da cirurgia do trigêmeo e ainda sentia muita dor. nem os analgésicos mais fortes, à base de morfina, traziam qualquer alívio. a dor era maior do que antes da operação, trazendo esse outro componente, será que não adiantou para nada ter deixado que abrissem minha cabeça? a solidão da dor é a como a do gozo, inversa. não há como partilhar, ainda que outra pessoa quisesse. são momentos que vc tem de passar sozinho. quem, se eu gritasse, me ouviria? aconteceu comigo de um livro trazer esse conforto inacreditável. Lembro que subi na bicicleta sem destino, entrei no campus, entrei na biblioteca, queria não ler mas ter um refúgio contra o barulho da cidade. ir aaquela estante específica foi absoluto acaso, até porque não gosto de poesia. Peguei primeiro “O livro de horas”, muito bonito mas nada além disso – até porque, de novo, não gosto de poesia. Então aconteceu. Li o primeiro verso de Elegias de Duíno e estava feito. O rosto doía como antes de eu chegar, mas havia alguma coisa presente na dor. eu estava sozinho como antes, como sempre, mas partilhava a solidão não com alguém – mas com alguma coisa, que eu desconhecia. E em dado momento – “Que a obscura lágrima floresça! Oh, como então vos amaria, noites de aflição! Por que me joelhei mais contrito, inconsoláveis irmãs, para vos acolher, para me perder em vossos cabelos desfeitos com mais abandono? Nós, dissipadores da dor” no livro de horas havia um Deus. Aqui a separação de Deus. Lá a partilha, caso toda esperança humana se frustre, ao menos com a divindade. aqui, o espaço vazio dessa dimensão estranha onde mesmo os amantes ocultam um do outro o destino. e, todavia, eis a partilha, a paz da compreensão que não ousa tentar definir o em que ela consiste. Sai da biblioteca e me meti entre os carros no trânsito de fim de tarde do centro de vitória. Na jerônimo monteiro há uma travessa e acho que foi ali, uma portinha, não mais, e perguntei e sim o homem tinha o livrinho. Meu tesouro, desde então, despencando agora nas mesmas mãos - Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas os santos ouviam, quando o imenso chamado os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados, os prodigiosos, e nada percebiam, tão absortos ouviam. Não que possas suportar a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem, a incessante mensagem que gera o silêncio – que é o som perfeito.