Pandora 29/07/2022Contém partes do livro“Minha mãe tem medo de mim. Explicara a ele que sua mãe guardava a foto do filho morto e olhava para ele como se estivesse vivo, enquanto olhava para ela como se estivesse morta.” - pág. 162
Este livro é uma preciosidade. É uma crítica social, um estudo de (falta de) valores, um panorama da alta sociedade, das famílias de bem direitistas hipócritas: religiosas no discurso e profanas na ação. E das relações complexas - e algumas vezes doentias - entre mães e filhas.
Existe uma semelhança nos extremamente ricos e nos miseravelmente pobres: a desesperança. Eles não têm nada a perder. Por mais que se esforcem, os miseráveis encontram-se estagnados numa situação que não lhes permite subir um patamar e os riquíssimos, bem, não há mais pra onde subir.
Quando você sabe que seu dinheiro irá sobreviver a você, coisas mundanas como trocar o seu jatinho por um mais novo, comprar o carro mais caro do mundo, se hospedar num paraíso particular ou dar um lance bilionário num leilão não significam nada. Só o poder sobre outro ser vivo. O medo, que é uma forma de controle. Jogos mentais, torturas físicas, humilhações, perigo. Porque a morte é inevitável para todos, sem exceção.
Annelise e Fernanda são duas adolescentes que se conheceram crianças, no círculo abastado onde se encontram suas famílias cheias de grana e ausentes de valores. Hipocritamente religiosas. Decidem ser irmãs. Mais tarde, no Colégio Bilíngue Delta, High-School-for-Girls, uma entidade do Opus Dei, formam com mais quatro colegas uma espécie de sociedade secreta que se encontra num prédio abandonado, envolto pelo mato e todo tipo de insetos e répteis. Tendo como base histórias de terror e as creepypastas(1) - pelas quais são apaixonadas -, elas se entregam a perigosos jogos sadomasoquistas, inflamados pela sexualidade latente e a inconsequência próprias da adolescência. Longe da escola onde devem reverenciar ao Deus cristão e estancar desejos, reverenciam ao Deus Branco, o branco que “representa pureza e luz, mas também ausência de cor, morte e indefinição.” - pág. 218
Miss Clara é a nova professora de Língua e Literatura do Colégio Delta. Extremamente instável emocionalmente, luta contra um transtorno de ansiedade agravado pela violência perpetrada por duas ex-alunas que a tornaram refém. Como bem colocado por Diego Aguilar em sua resenha publicada em El Colóquio de Los Perros, Clara tem uma relação quase “normanbatesiana”(2) com a mãe morta. Ao mesmo tempo em que é assombrada pela figura materna, sua obsessão a leva a vestir as roupas da mãe e até a repetir seus gestos e atitudes.
As relações de Fernanda e Annelise com suas mães também não é saudável: a mãe de Fernanda tem medo da filha, que trata bem socialmente, mas ignora no âmbito familiar; a de Annelise a maltrata física e psicologicamente.
Quando o universo dessas garotas colide com o da professora, o horror branco(3) explode.
Não só o tratamento das temáticas aqui é feito de modo magistral - bem como o desenvolvimento das personagens -, como os vários recursos narrativos de Ojeda intensificam e diferenciam cada capítulo. Ojeda vai às “zonas escuras” a que já se referiu Ariana Harwicz, que afirma que “todo escritor deveria lutar contra à autocensura”. O resultado é esta obra única, originalíssima e inquietante.
Como disse Malik, do canal Para qué Leer… “Mónica, gracias por perturbarme!”
“O Deus Branco as fazia rir de suas mães: de seus seios caídos dentro de sutiãs Victoria’s Secret, de seus cremes antirrugas feitos para caras-de-uvas-passas e suas tinturas de cabelos fosforescentes porque a natureza das filhas, dizia o credo, era saltar na língua materna de mãos dadas com firmeza; sobreviver à mandíbula para se converter na mandíbula(4), tomar o lugar do monstro, isto é, da mãe-Deus que dava início ao mundo do desejo.” - pág. 160
1. Creepypasta é um termo criado para definir as histórias de terror que são divulgadas através da internet em fóruns e demais redes sociais de modo viral, espalhando-se rapidamente no universo online;
2. Referência a Norman Bates, personagem do livro Psicose, de Robert Bloch;
3. Horror branco seria aquilo que não se pode ver, não se pode tocar, mas que se sabe que está latente; é quando se tem consciência de que uma coisa horrível irá acontecer, mas não se sabe quando;
4. A mandíbula do crocodilo é uma combinação surpreendente de força e sensibilidade. Dentre todos os animais que existem hoje, o crocodilo tem a mordida mais poderosa já medida. Ela é coberta de milhares de saliências que agem como sensores e contêm uma quantidade enorme de terminações nervosas. Assim, o crocodilo consegue perceber se o que está em sua boca é comida ou não. Por isso, uma mãe crocodilo pode carregar seus filhotes na boca sem esmagá-los acidentalmente. Ela faz isso para protegê-los de predadores.
Fontes: JW, Wikipédia, Paraque leer, El Colóquio de Los Perros.