Um garoto crescido na zona rural do Sul da Índia testemunha as profundas mudanças atravessadas pela jovem república independente de cultura milenar. A chegada da linha férrea rasga a terra e abrevia o tempo das conversas entre pequenos agricultores e comerciantes, lacerando o mundo onde Raju vive seus jogos de infância à sombra do pé de tamarindo; seu caráter de homem é forjado pelo aparente extravio dos valores tradicionais e pela busca de uma moderna identidade indiana.
Já rapaz, ele gerencia uma “loja de conveniência” na estação e “terceiriza” esse comércio para improvisar outro: o de guia turístico. Pago “para passear e se divertir”, Raju não hesita em inventar datações ou discorrer sobre localidades que desconhece; tais leviandades divertem o leitor e não pesam nos dias do protagonista, que seguem tranquilos até a chegada de um casal vindo da capital do estado. A paixão à primeira vista por Rosie, “mulher serpente” e esposa insatisfeita de um enfadonho arqueólogo que a impede de exercer sua arte de dançarina clássica, desencaminha o guia do rumo preconizado por sua mãe – o de casar-se com a prima – e o leva a conhecer as luzes da ribalta, as trevas do engano e os limites do cárcere.
Ao deixar a prisão, o outrora guia turístico e empresário de sucesso procura abrigo num templo antigo à beira do rio. Um aldeão o toma por santo e – sem opção – Raju aceita representar o papel, tornando-se o amado guia espiritual da população dos pequenos vilarejos nos arrabaldes de Malgudi. Sua interpretação magistral beira o mau-caratismo, porém a inexorabilidade do Dharma – isto é, da Lei superior – imporá o discernimento do que são a fé, a verdade e a sede de misticismo que tudo permeia na Índia. Como sempre acontece quando é o gênio de Narayan a tecer os fios do destino, a vida revela-se como farsa hilariante e aventura de compassivo encanto.
Aclamado como a obra-prima do escritor, O guia conquistou diversos prêmios literários, foi adaptado para o cinema, exibido como musical na Broadway e é objeto de cursos de literatura em língua inglesa. Suas repetidas edições estão espalhadas pelo mundo como documento vivo e atual de uma civilização que não despreza a presença cotidiana dos deuses e nos expõe todos – indianos ou não – à vocação universal à santidade, ainda que involuntária. (L. N.)
Ficção