Mauricio (Vespeiro) 10/04/2018Talvez em outro momento funcione melhor pra mim.Ambientado em Londres, 1989, não por acaso o ano da queda do Muro de Berlim e do início do processo de dissolução da URSS (finalizado em 1991), “Um Pequeno Assassinato” conta a história de Timothy Hole, um publicitário de sucesso que reflete sobre suas motivações e ambições, ao mesmo tempo em que passa a ser perseguido por uma estranha criança.
Vencedora do prêmio Eisner de Melhor Graphic Novel de 1994, “Um Pequeno Assassinato” foi a primeira obra independente de Alan Moore, surgindo depois do seu desentendimento com Marvel e DC. Ele se culpava por trair seus princípios (socialistas) e investir boa parte da carreira em grandes editoras (capitalistas, opressoras e todo aquele blá blá blá), na criação e desenvolvimento de super-herois. Na prática, esse rompimento foi positivo para seu trabalho, pois dele derivaram obras independentes como o magnífico “Do Inferno”. A concepção original é de Oscar Zárate e Alan Moore a foi lapidando. Processo totalmente diferente para Moore, que sempre partiu das próprias ideias. Ele considera “Um Pequeno Assassinato” sua obra preferida, certamente por se enxergar nela.
Muitas passagens trazem paralelos com a vida real de Alan Moore, transformando a HQ em uma obra de ficção semi-autobiográfica. Trata essencialmente do arrependimento (ou crise existencial) de um homem ao perceber que anulou e matou seus princípios, tornando sua vida infeliz. Nessa jornada de autoconhecimento, identifica vários “pequenos assassinatos”, traduzidos em traições, principalmente ideológicas. Sente acumular um pesado fardo de culpas que vão se transformando em demônios guardados que precisam ser exorcizados. Indispensável para quem se regozija ao nutrir-se de Dostoievski, Kafka, Orwell, Hemingway...
Com destaque para a perfeição técnica, tudo que Alan Moore produz não tem como passar despercebido. Sempre trazendo conteúdos profundos, muita pesquisa, críticas sociais e filosofia em parceria com ilustradores de primeiríssima qualidade. Apesar de Oscar Zárate não ter conseguido me empolgar - não propriamente pelas ilustrações, mas pela narrativa gráfica -, percebe-se que seu trabalho está muito bem conectado com a história. Como a narrativa de Moore é dominada por flashbacks, boa parte da arte é feita com uma aquarela meio borrada, assim como são nossas longínquas lembranças. Da mesma forma, algumas recordações de diálogos aparecem truncadas, em nuances, nunca de forma explícita ou completa. Acontece que a cabeça de um gênio não raramente se encontra em descompasso com um raciocínio linear, tornando alguns de seus pensamentos mais complexos e menos acessíveis. Não tiro a razão de quem desista dessa HQ logo no primeiro capítulo. A narrativa não é literal, sendo composta por lembranças, pensamentos, culpas e reflexões colocadas de forma angustiante numa linha do tempo regressiva que demanda muita atenção e discernimento ao leitor.
Intimista, filosófica, adulta, dramática, intelectual, metafórica, realista... e tudo leva a uma conclusão transcrita nas palavras do próprio Moore (na voz do personagem principal) ao final da HQ: “Há uma nova gema no ovo expelido. Há uma nova pulsação no útero raspado. Todas as coisas estão grávidas”. Ficou claro, né? Brincadeiras à parte, uma análise deslocada pode nos trazer algo como “Siga seus sonhos, seja você mesmo, não traia seus princípios mais profundos”. Mas para se extrair essa mensagem, é preciso peneirar, peneirar, peneirar... Ou seja, não é um material para ser digerido numa primeira leitura.
Não classificaria a obra com bojo anticapitalista. Apesar de carregar uma notável mensagem de “redenção” quando o protagonista (e alter-ego do autor) se arrepende de trair seus princípios socialistas, vejo isso como um dos argumentos para criar fortes e perturbadoras rupturas, mote principal da trama.
A edição da Pipoca & Nanquim é luxuosa, caprichada, excelente impressão, papel couché colorido de alta gramatura, tamanho grande, capa dura e texturizada. Um primor, mas não livre de alguns errinhos que não comprometem a obra. Crédito para os editores que resgataram e republicaram no Brasil uma obra lançada há 26 anos.
Nota do livro: 6,40 (3 estrelas).