Paulo 26/04/2020
Nossa sociedade contemporânea funciona em alta velocidade. Somos programados para trabalhar, pagar contas, consumir. Poucos de nós tem a oportunidade de se questionar "é isso o que eu gostaria de estar fazendo?". Certamente para muitos de nós, aquele sonho de criança desapareceu nas poeiras do tempo porque crescemos e recebemos outras responsabilidades. Nem todos podem falar que seguiram seus sonhos, até porque segui-los nem sempre é fácil. Exige abnegação, persistência, coragem. Ficar com o programado, seguir um emprego que não gostamos se torna parte do sacrifício e das responsabilidades da vida adulta. E deixar os sonhos para trás pode nos tornar pessoas amargas e tristes, insatisfeitas com o rumo que escolhemos. Esse é o tema principal dessa história incrível que Toulmé nos traz em Duas Vidas.
A arte dele segue os padrões da banda desenhada europeia. Linha clara, foco nos personagens e em suas ações, sem muitas firulas quadrinísticas. Quem está esperando algo espalhafatoso ou super detalhista, não é isso o que você vai encontrar aqui. Até porque estamos tratando de uma narrativa mais intimista, então o foco certamente não está na arte, apesar de ela cumprir bem o seu papel. Gosto de como o Toulmé dá personalidade aos cenários inserindo detalhes bem sutis como placas de restaurantes, transeuntes, histórias acontecendo no fundo. É como se os protagonistas existissem em um mundo dinâmico onde muita coisa acontece e eles não são o centro do universo. O autor simplesmente pegou uma lupa e focou em um núcleo narrativo.
O roteiro é bem amarradinho. E olhe que havia a possibilidade do Toulmé se enrolar pelas escolhas que ele fez. A cada início de capítulo vemos um flashback da vida do Baudouin, seja na adolescência, na infância ou no início de sua vida adulta. Essas cenas servem para mostrar a construção da personalidade do protagonista e sua relação com Luc. No começo a gente acaba não dando muita bola para essas pequenas vignettes, mas com o passar do tempo, elas vão ficando mais e mais compreensíveis porque a gente passa a conhecer melhor os personagens. Elas convergem rumo aos capítulos finais onde o autor vai fazer o desfecho. Achei os capítulos pequenos; acho que o Toulmé poderia ter inserido menos capítulos com mais páginas. O efeito teria sido semelhante. Mas, eu entendi porque ele empregou tantos capítulos: se trata de uma divisão em cenas.
Baudoin é um advogado que trabalha duramente em uma firma de advocacia. Seu cotidiano é tomado pelo assédio moral de seu chefe e de um trabalho que absorve tudo que ele tem de si. Em sua vida adulta, ele não foi capaz de fazer uma família. A personalidade tímida e introvertida dele, que teve uma enorme contribuição de um pai que não o estimulou a ser uma pessoa melhor, é um dos seus maiores pontos fracos. Seu irmão Luc acaba de chegar do Benim para algumas semanas na França e decide passar esse tempo com Baudoin. Os irmãos não poderiam ser mais diferentes: enquanto o protagonista é introvertido, Luc é farrista, engraçado e faz aquilo que quer sem se preocupar com bens materiais. Os irmãos discutem porque Luc percebe o quanto Baudoin é uma pessoa infeliz. Alguns dias depois da chegada de Luc, o protagonista percebe o aparecimento de um caroço do lado direito do seu corpo. É aí que sua vida vai mudar para sempre.
Uma das coisas que eu mais curti na escrita do Toulmé é o quanto os personagens são pessoas e não parte do roteiro. Reais, com qualidades e defeitos, Baudoin, Luc, seus pais, os amigos que eles fazem. Você poderia encontrar com um deles na rua. E isso torna a narrativa ainda melhor. Porque a história acaba ressoando conosco. Baudoin é tão pessoa que com certeza algum dos leitores vai perceber semelhanças com ele. Acabamos passando a torcer pelos personagens, nos entristecendo quando acontece algo ruim, ficando feliz ao receber uma boa notícia. Mas, o principal sentimento é a gente querer dar um sacode no Baudoin para ele poder despertar do seu torpor. Essas são algumas das razões pelas quais Duas Vidas é uma HQ tão fascinante. Porque nos faz pensar, bate... digo, marreta funda no nosso coração. A sua mensagem é clara e Toulmé não alivia o soco no estômago.
Toulmé conduz os diálogos com uma leveza incrível e os diálogos são mais profundos do que parecem em uma primeira leitura. Luc joga coisas na cara do seu irmão que muitas vezes nós mesmos precisamos ouvir de alguém. Entendo as necessidades da vida adulta e o quanto vivemos em um mundo caro... mas, ser um profissional insatisfeito talvez seja ainda pior. E eu vejo muitos deles todos os dias: pessoas que não queriam estar ali. Estão por falta de opção, por infelicidade ou por escolhas ruins. O caminho para a realização dos sonhos é coberto de espinhos. Ninguém disse que seria fácil.
Sinceramente, eu não sei como reagiria às duas situações que acontecem na HQ: a que motiva a história e o final. No segundo caso, tenho certeza que as respostas vão ser muito divididas. Nem quero falar para não dar spoiler, mas Duas Vidas é uma daquelas histórias que não nos permite escolher ficar no meio. Vai nos pedir um posicionamento, uma reflexão e nos deixará com algo no que pensar. Não saímos os mesmos após uma leitura tão provocativa. Não tenho como expressar a forma como essa história me impactou. E, é claro, não tem como não se emocionar com a história. O fato de ela ser intimista contribui e muito para isso. Quero ler mais coisas do Toulmé porque creio que ele sabe bem trabalhar personagens e mexer com temas delicados. Só tenho a sugerir a vocês que leiam essa HQ pelo menos uma vez em suas vidas. Duas Vidas é uma lição de vida necessária para todos. Não tenho melhor propaganda para fazer dessa história.
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