Renata 10/11/2022
Li Umrigar a primeira vez com “A distância entre nós”, e não lembrava o quanto sua escrita era agradável. Mesmo utilizando a alternância em duas vozes, em primeira e terceira pessoas o texto não tem solavancos, nota 10 em harmonia e evolução.
O livro é narrado ora em terceira, ora em primeira pessoa, e é uma voz muito carregada de sentimentos, mas nunca há o recurso de dirigir emoções fáceis para levar o leitor às lágrimas e provocar uma descarga catártica, não, é uma fala simples, dolorida e poética, que, pelo contrário, não trazem nenhum alívio.
Honra traz a história de duas mulheres com as vidas atravessadas duramente pelo que há de violento na cultura e tradições indianas. O desfecho de cada uma representando o leque de possibilidades disponíveis diante do contexto social, seja de uma Índia rural e mais fechada em suas perspectivas, seja de uma Índia cosmopolita, construída a partir da absorção e da mistura.
Há uma grande história de amor, e há até mesmo um romance, mas não sei se me fixaria aí para descrever do que se trata, por que mesmo o amor, e a possibilidade de o escolher e o viver está intrinsecamente ligado a esse cenário que é em si personagem.
Falando em temas, Umrigar traz mais uma vez questões de classe, muito bem representadas pela permanência das tradições, como questões de gênero, tudo potencializado quando nos vemos em um ambiente rural, acredito que pouco abordado nas obras que nos chegam sobre a Índia. Passa ainda pela questão de pertencimento das pessoas que optam ou são obrigadas a deixar sua terra natal, sua cultura e vínculos de afeto, o que faz parte do repertório de experiências da própria autora.
O livro traz perspectivas e críticas a determinados aspectos culturais, embora Umrigar se preocupe ao longo do texto em construir a percepção de que não se pode resumir o país e sua cultura àquilo que crítica, é um ponto entre muitos outros. Mesmo diante da onda de brutalidade é possível encontrar pessoas que se colocam contra a corrente.
As personagens que acompanhamos são Meena, alvo da violência de sua própria família e comunidade por fazer escolhas que iam contra aquilo que estava determinado por seu papel social de mulher hindu.
Já Smita, também de origem indiana, se mudou para os EUA quando adolescente, após um episódio com sua família. Smita tem todos os privilégios de uma cidadã estadunidense e faz o paralelo com Meena, despojada de todos os direitos, desde o mais básico, como o direito a própria vida. Subjugada não somente a seus irmãos, mas aos ancião e líderes do vilarejo, todas autoridades masculinas.
O leitor precisa ter foco pra não jogar o livro longe com a indignação a que é submetido com o desenrolar da história de Meena.
É impactante pensar em um país gigantesco como a Índia, com cidades complexas e misturadas, caldeirões de cultura, história, religiões, perspectivas de vida, caminhando orientado por um mix de nacionalismo e fundamentalismo religioso.
Para além da história da barbárie contra a mulher, contra o feminino, que, no fim das contas, acontece a cada minuto no mundo inteiro em maior ou menos intensidade, foi importante saber sobre os conflitos entre mulçumanos e a maioria hindu, que se escorando em um discurso nacionalista pretende de certo modo reescrever a história do país, refundando suas bases, nem que para isso tenham que literalmente a demolir, como foi o caso da mesquita Babri, em 1992. Como é o caso do próprio Taj Mahal, bem cultural mundial que, por representar uma obra muçulmana, é mal visto por essa maioria que está no poder e que por isso corre risco.
Além de me deixar preocupada com o futuro político da Índia, Umrigar constrói um reflexão sobre o que significa honra e como este termo e sua negação, a desonra, podem ser torcidos e distorcidos. Como podem ser utilizados para justificar atos, que, para outras pessoas, com conceitos de honra diferentes, podem ser considerados atrozes.
Interessante notar que Smita não era nova no trabalho em lidar com a dor e a barbárie, enquanto jornalista já tinha coberto casos ainda piores. O que faz com que a história de Meena seja tão significativa é o fato de ecoar em sua própria história, sua própria dor, até então mantida em silêncio.
A contra partida da perspectiva de Smita sobre a índia é dada pelo personagem Mohan, que, preciso dizer, é o tipo perfeitinho dos romances: boa pessoa, descomplicado, gentil, carinhoso, alegre e defensor de sua terra natal, para exasperação de Smita.
A gente sabe desde o início que algo aconteceu à Smita que gerou essa repulsa pela Índia, e é Mohan que consegue a levar a dar voz a seu passado, e o leitor que se prepare, por que é revoltante e muito triste.
Honra diz respeito a política, e como esta pode trabalhar para dividir uma população, um país. Provocando e estimulando rixas, diferenças, mágoas e tornando impossível a convivência pacífica. Acirrar, dividir, dominar. A produção de uma sociedade dividida como modo de dominação, o que me parece uma discussão muitíssimo atual.