Tupa 07/01/2024
Na província de Eastern Township, no Canadá, entre vales nevados e encastelada às margens do Rio Bella Bella, está localizada a minúscula e pitoresca vila de Three Pines, cenários onde se desenrolam os eventos narrativos.
Um lugarejo habitado por antigos e novos moradores. Uma comunidade tão antiga e pequena, mas profundamente impregnada pela atuação da complexa psiquê humana. Um local calmo, onde não se usa trancar portas e janelas, de repente se torna palco de um misterioso assassinato de uma respeitada e agradável senhora, a professora aposentada Jane Neal.
A premissa é boa. Um bom mistério policial, ambientado em uma cidadezinha pacata do interior, em meio a natureza, friozinho! Confesso que fiquei eufórica para pôr meus olhos sobre essa história.
Foi empolgada também como o título, Natureza Morta, que não remete literalmente à elementos naturais extáticos capturados de forma artística, mas sim pelo agente causador dos atos humanos, irredutível aos comandos de fatores lógicos conhecidos pelo ser humano. Um conceito antigo, já debatido pelos gregos que abarcavam os estudos dos fundamentos da alma, ego, mente e espírito. Esse conceito foi profundamente explorado por Freud durante o início do século XIX, dividido sob os elementos: Id, Ego e Superego, um significado estrutural e profundo.
Entretanto, já no início da leitura, me vi embrenhada numa série de diálogos insípidos, inúteis e superficiais, que fizeram com que um alerta se acendesse em meu espírito. Alguma coisa estava fora de contexto.
Perseverei, pois o enredo era bastante descritivo e visual, e o cenário descrito, um colírio para a imaginação. Confesso que este foi o principal fator para a minha insistência, pois me vi lançada na mais singela exposição dos detalhes de uma vilinha pitoresca do interior do Canadá, muito semelhante à St. Mary Mead, presente nos livros de Ágatha Christie, mas com muito mais neve.
Em Natureza Morta, o leitor é levado a chalezinhos e um bistrôzinho aconchegante onde as personagens degustam desde um quentinho café au lait, até sanduíches de croissants com fatias grossas de presunto curado em xarope de bordo, molho de mostarda e mel e cheddar envelhecido.
Mas os problemas com a narrativa começam a aparecer com o desenrolar dos eventos que constroem o mistério. Uma doce e amável senhora, antiga moradora local é brutalmente morta em uma trilha de caça. Todos a respeitavam e admiravam, quem poderia ter cometido um ato tão insensível e terrível?
A autora até se esforça para construir boas biografias, perfis que remetem às velhas histórias do lugar, na tentativa de espalhar pistas de quem poderia querer a morte da doce senhora. Algumas dessas crônicas são realmente muito boas, como a sombria história de Ruth Zardo e a própria vida pregressa da vítima, sessenta anos antes.
A partir daí a narrativa se torna um ajuntamento de especulações e desencontros, onde personagens são encontrados em posse de provas e evidências irrefutáveis do crime, para em seguida serem esquecidas, bem como as provas, que não voltam a aparecer nem para uma explicação plausível no desfecho. Na sequência, o foco narrativo passa a se concentrar em outras personagens e na construção emaranhada de suas possíveis motivações e envolvimentos no crime, apresentando um desfile grotesco e coagido de vícios e virtudes humanas.
Até que do nada, há um aceleramento narrativo, onde o pacato se torna vilão, o tolo se torna cruel, o racional, ingênuo, o correto, desequilibrado e está descoberto o culapado de ter tirado a vida da pobre velhinha, bem como o motivo do crime.
Mesmo considerando que a dinâmica pensada pela autora fosse justamente trabalhar o duplo ruim que habita no interior de cada um, que muitas vezes é mascarado durante anos a fio, a motivação, nesta narrativa, sinceramente é ruim e inconsistente, não possui fundamentação teórica estável e resistente. É muito pouco para tanto trabalho, e totalmente inconsistente na elaboração de uma deformidade moral e patológica. Não funcionou para mim!
Outro fator construtivo que incomodou bastante durante a leitura, foi a associação, a similaridade preliminar, correspondente que a sinopse faz entre as personagens Armand Gamache e Hercule Poirot, este uma criação excepcional da autora britânica, Ágatha Christie. Simplesmente é uma comparação ridícula e grosseira. Se foi intenção de Penny, ao conceber Armand Gamache, suscitar alguma semelhança entre ambas as personagens, infelizmente esta falhou, lamentavelmente.
Poirot é sagaz, inabalável, genial, astuto, engenhoso, criativo e mais uma dúzia de adjetivos impressionáveis, ao passo que Gamache é apagado, hesitante, inseguro, hesitante, limitado, exercendo quase um papel coadjuvante durante as investigações.
Não sei se de forma proposital, Natureza Morta se assemelha muito à Dia de feira, a obra pintada pela vítima antes da morte, que quando observada, causa uma confusão de sentimentos e emoções no espectador, um mixe de cansaço e aconchego, confusão e deleite, indignação e excitação, curiosidade e decepção.
Também foi frustrante verificar que a autora poderia ter explorado uma vertente muito mais complexa e obscura da psiquê humana, evidenciada em uma das melhores personagens do enredo. Poderia ter realmente tratado de um dos mais antigos e sombrios sentimentos do homem: a inveja.
Já fora do âmbito narrativo, se ainda existia uma forma de arruinar ainda mais a história de Louise Penny, com certeza esta se concretizou na série criada por Emília di Girolamo, lançada pela Amazon Prime em 2022, aqui no Brasil, que passa a descaracterizar as personagens originais, inserindo plots paralelos, e personagens inexistentes no enredo precedente, apesar de abordar uma causa humanitária que não vem ao caso aqui.