Pandora 26/02/2023O Caderno Proibido do título é um caderno preto, luzidio, grosso, que a protagonista Valeria compra subversivamente num domingo pós 2ª Guerra na Itália, onde só alguns itens podiam ser comercializados, o caderno não incluído. Essa quebra de regras é o início de muitos questionamentos e culpas que a escrita de um diário provoca nesta mulher, que se achava “feliz, felicíssima” na sua vida pequeno-burguesa.
Aqui, como em A vida invisível de Eurídice Gusmão, acompanhamos a vida, principalmente no âmbito familiar, de uma mulher acima dos 40 numa época em que esperava-se das mulheres que fossem boas esposas e mães e se sentissem inteiramente satisfeitas com isso. Valeria, a protagonista deste livro, tem 43 anos em 1950, é casada, tem dois filhos adultos e trabalha num escritório - porém, por necessidade, o que o tempo todo é confirmado pelos outros personagens: sua mãe, seu filho etc.
Certa de que o caderno não seria visto com bons olhos por nenhum integrante de sua família, Valeria só escreve nele à noite, após realizar todas as tarefas do dia e ver-se sozinha - ainda que isso lhe custe boas horas de sono - , e o esconde cada hora em um lugar, sempre temendo que o esconderijo seja descoberto.
Aos poucos, a “feliz, felicíssima” Valeria, ao registrar seu cotidiano no diário, vai descobrindo que nem tudo são flores nesta sua pacata e previsível vidinha. A começar por sua relação com a filha, Mirella.
É triste como muitas vezes são as próprias mulheres que oprimem outras mulheres em suas conquistas e liberdades, como Valeria faz com sua filha, uma jovem inteligente, estudiosa e questionadora, que não vê o casamento como o único caminho para uma mulher; ela espera ter sucesso profissional e ser uma parceira do homem que ama. Mas Valeria ora a admira, ora a reprime; esquecendo-se de quem fora quando jovem, age com a filha com o rigor com que sua mãe sempre agiu com ela. É um conflito interno entre atender às demandas patriarcais que foi ensinada a obedecer e o vislumbre de que uma mulher possa ter alternativas de vida. Em dado momento sua mãe lhe diz: “Uma mulher jamais deve permanecer desocupada” (pág. 111), o que me remeteu ao conto Presépio, de Carlos Drummond de Andrade, onde afirma o narrador sobre a protagonista, Dasdores: “Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem.” [1]
Em contrapartida, a relação de Valeria com o filho Riccardo é totalmente diferente: apesar de reconhecer suas limitações intelectuais e sua pouca disposição ao trabalho, ela a ele tudo perdoa, tudo concede. Inclusive compete com a nora pela atenção de Riccardo, um machista que enaltece a submissão da namorada. “Ontem mesmo ele me abraçava dizendo: “Você é uma mulher excepcional, mamãe“. Sempre recorre a mim em busca de conselhos e me pede muitos pequenos favores, quase como se quisesse me dar a oportunidade de mostrar que sou hábil em tudo. Tenho a impressão de que essa sua atitude causa ciúme em Marina. Se assim for, é sinal de que ela tem um espírito mesquinho, porque na verdade deveria compreender que nenhum sentimento, por mais profundo que seja, pode substituir o da mãe.” (pág. 245)
Completa esta família Michele, o pacato e omisso pai bancário, sempre à espera de uma nova oportunidade, talvez um grande aumento, uma guinada de vida, ao mesmo tempo em que, assim como Valeria - a quem ele chama de mamãe -, vê-se atado às responsabilidades e limitações impostas por seu papel de provedor. Ao chegar do trabalho, ele espera jantar, ouvir o rádio e ler o jornal sem aborrecimentos, os quais Valeria muitas vezes lhe esconde, para não o perturbar. E embora seja um relacionamento cortês, não existe diálogo. “Pensava que Michele talvez também tenha fingido dormir algumas vezes. E que desse contínuo fingir dormir e permanecer acordado na própria angústia, sem que o companheiro se dê conta, é feita a história de um casamento exemplar.” (pág. 264)
Aos poucos, conforme a transgressão de escrever um diário e a transgressão de pensamentos antes não ousados se fundem, Valeria passa a perceber sua própria solidão dentro daquela casa que é, ao mesmo tempo, sua prisão e seu refúgio, o que lhe permite prestar atenção ao que se passa em seu íntimo e fora dos limites do seu lar. É uma jornada difícil e conflituosa.
Não posso negar que foi impossível ler esta narrativa sem me ver nela em algum momento, rever minhas relações com meus pais - minha mãe especialmente -, minha filha, meu ex-marido, as coisas absurdas que já ouvi por ser mulher, as que aceitei pelo mesmo motivo e as que lutei para mudar.
Apesar de apreciar a temática, há algo na escrita da autora, apesar de sua excelência, que me consumiu e me cansou um pouco, por isso tive que estabelecer ler trinta páginas por dia. Acho que não só o fato de que se trata de um diário e, portanto, é o fluxo de pensamento de uma só pessoa, mas que esta pessoa, Valeria, é um tanto irritante às vezes. Enfim, humana. Aliás, como o somos todos nós.
Alba de Céspedes justificou assim o sucesso de seu livro: “Caderno Proibido é o livro que conforta quem se sente fracassado.”
[1] Publicado na coletânea Presépio e outros contos de Natal, da SESI -SP Editora, organizado por Luiz Ruffato.