Ladyce 29/07/2023
No início dos anos 2000, a escritora inglesa Fay Weldon (1931-2023) trouxe para o mundo literário uma interessante discussão: colocação de produto (Product Placement) na obra literária. Fay Weldon estava em bom momento em sua vida. Havia publicado diversos livros cujos enredos eram associados ao feminismo e havia também se projetado no mercado americano, atravessando o Atlântico. Grande crítica social chegou a ter muito sucesso com o romance Vida e Amores de uma Mulher Demônio, que em 1989, tornou-se no filme She-Devil, com Meryl Streep e Roseanne Barr. Convencida, no entanto, de que nunca receberia prêmios como o Booker, mesmo tendo sido um dos jurados deste prêmio anteriormente, Fay Weldon procurou independência econômica, aceitando, por uma quantia nunca revelada, escrever um romance onde a joalheria italiana Bulgari tivesse lugar de destaque. Assim nasceu The Bulgari Connection, em 2000 (Conexão Bulgari, Rocco, 2001, no Brasil). Assim que a imprensa soube do caso surtiu a controvérsia: colocação de produto em obra literária? Como assim?
Alguns acharam que Weldon estava poluindo a arte literária e houve aqueles para quem esse parecia ser o novo caminho da literatura e da diminuição de custos para as editoras. Alguns compararam o sistema ao de séculos atrás, quando escritores tinham o patrocínio do rei, e só se publicava o que o monarca autorizasse, outros acharam que seria uma excelente ferramenta para vendas, porque o leitor teria uma experiência mais íntima com o produto durante a leitura. A moda não pegou, mesmo que este não tenha sido o único livro a ter colocação de produto em seu texto ou enredo. A companhia de produtos de beleza Clinique, por exemplo é ponto de interesse no livro de Meg Cabot, How to Be Popular (Como ser popular, 2008, Galera); e o escritor inglês William Boyd, cujos livros têm-me entretido muito, aceitou comissão da companhia inglesa de carros de luxo, Land Rover, para escrever um conto em que este carro fosse presença necessária. O debate persiste. Mas a esta altura, por que eu estaria trazendo este assunto à tona na resenha de As Vitoriosas de Laetitia Colombani?
O motivo é simples: temos a história, do surgimento do Exército da Salvação, de maneira didática, gratuita e tediosa, no início do livro. Parece matéria comprada, ou direta de um press release, para alavancar fundos para as boas ações da instituição. Não fosse isso suficiente, temos por outro lado a história do Palais de Femmes de Paris, uma casa de abrigo para mulheres, mantida pelo Exército da Salvação, e reaberta em 2011. As aventuras dos personagens em ambos os contextos não importam tanto quanto a elevação em pedestal de ouro dessa organização beneficente. As personagens envolvidas nas histórias das habitantes do Palais de Femmes, não são exploradas a fundo, fazendo papel exclusivo de pano de fundo para a propaganda institucional. Fraquíssimo.
Laetitia Colombani usa da mesma estratégia de seu livro anterior, "A Trança", também resenhado neste blog, em que duas histórias aparentemente desconexas acabam se entrelaçando. Mas se "A Trança" já tinha alguns problemas na costura das histórias, este livro eleva esse problema ao quadrado.
Não fosse isso estaríamos bem? Não. Discordo também da maneira de narrar da autora. Colombani não deixa absolutamente nada para o leitor imaginar. Tudo é dito antes mesmo de ser necessário, como se estivéssemos frente a um texto para aqueles que não conseguem se identificar com os personagens. Aqui vai um exemplo:
“É dominada por uma emoção incontrolável. Diante de Binta, ela cai no choro — ou melhor, desaba. Não são apenas lágrimas, é muito mais do que isso. Nelas há Jérémy, o filho que nunca vão ter, as meias que comprou sem saber por quê. Há o sofrimento de Binta, a profanação ocorrida quando tinha quatro anos, a menininha das balas, Khalidou que ficou na Guiné. Há tudo aquilo e muito mais, a tristeza que ela não consegue mais conter, que não consegue mais esconder.“
Será que acompanhando o progresso da personagem já não saberíamos todas as emoções contidas nessas lágrimas? Será que o leitor não conseguiria dar algo de si para complementar a leitura? Por que termos cada possibilidade enunciada por nós? Esta maneira de narrar, que exclui a contribuição emocional do leitor, é muito rasa. E o mais interessante é que Colombani começa a narrativa desta história mais ou menos se colocando em pé de igualdade com grandes escritoras dos séculos XIX e XX:
“Já se via sentada diante de uma escrivaninha durante o resto da vida, um gato sobre os joelhos, como Colette, Um quarto só seu, como Virginia.” ou “Educadas em conventos, casavam-se com homens que não tinham escolhido. “Somos criadas como santas e depois vendidas como éguas”, escrevera George Sand, que recusava em altos brados o hímen que lhe queriam impor. ” Mencionadas? Colette, Virginia Woolf e George Sand. É isso mesmo, Colombani?
Li este livro porque foi selecionado em votação democrática por um dos meus grupos de leitura. Não recomendo. Use o mesmo tempo, a mesma energia para ler outra obra que vá lhe dar mais ferramentas para lidar com o mundo, conhecer valores, até mesmo se informar sobre o Exército da Salvação ou o Palais des Femmes. Uso da Wikipedia certamente seria mais interessante.