Stella F.. 14/06/2023
Diorama da natureza e da vida
Diorama
Carol Bensimon - 2022 / 288 páginas - Companhia das Letras
Logo de início somos apresentados à família da protagonista Cecília que nos conta sua história em dois momentos: quando criança e agora adulta vivendo nos Estados Unidos, e com uma carreira de taxidermista onde monta muitos dioramas, reprodução de ambientes representativos do habitat natural dos animais. Cecília faz sérias críticas aos empalhadores e naturalistas, matando os animais e às vezes, deixando os bichos empalhados, em um depósito, esquecidos. "Eu gostava deles. Eles me deixavam intrigada. Eram animais e eram também objetos. Além disso, e acima de tudo, eu guardava lembranças muito nítidas das minhas visitas ao museu de história natural de Nova York. Nada era mais incrível que os dioramas. Eu tinha passado muitas horas diante deles, a poucos centímetros do vidro, completamente abismada pelos habitats refeitos nos mínimos detalhes. Queria entender como aquilo tudo fora construído. Parecia uma combinação fascinante de ciência e teatro. Comecei a ler vários livros sobre o tema." (pg. 216)
Conhecemos as personagens: mãe (Carmen Matzembacher), pai (Raul), avós (Wagner e Ondina), irmãos (Vinicius e Marcos), o cachorro Faísca e já vamos acompanhar uma viagem de caçada nos pampas. Nessa viagem já vemos se delineando as características de alguns personagens, e ficamos avisados que logo tudo irá mudar, uma mudança radical na vida de todos.
No presente, o namorado de Cecilia, Jesse, viajou com sua banda. Ele é músico. Na ausência dele, Ciça recebe notícias de que seu pai está doente, em Porto Alegre. Ela sabe que deveria ir ver o pai, mas não consegue. O irmão fala que ela conseguiu se afastar, "ilesa". Mas ela diz que não. Tudo a remete ao passado. Ela gosta de hotéis onde ao lado sabe que é tudo igual, meio padronizado, nada sai do lugar, tudo funciona igual para todo mundo. Mora em um quarto sublocado onde a dona ouve televisão o dia inteiro, e isso a remete aos anos oitenta, é como se ela, apesar de muito distante de casa, não saísse do lugar. "É como se as mesmíssimas colchas, cadeiras e luminárias, arranjadas e rearranjadas nas mesmas posições, fizessem eco aos padrões limitados dos dramas humanos vividos aqui. Por um instante, isso parece diminuir o peso da minha história." (pg. 53) "Deixar para trás não é esquecer." (pg. 35)
A partir da segunda parte do livro me senti mais empolgada com a leitura, pois vamos conhecer o Caso Satti, o caso ficcionalizado do assassinato real de um deputado federal, e que tem como principal suspeito o pai da protagonista. Conhecemos todos os meandros do que levou Raul a ser suspeito e vemos Cecília com sua perspicácia, apesar dos 9 anos, não compreendendo tudo, mas observando (quando adulta vai rever os acontecimentos do dia do assassinato e dos dias seguintes, e vai estudar a posição da mãe, do pai, do tio Weber e coisas que podiam passar despercebidas, mas que foram escolhas malfeitas). Sabemos da discordância política, apesar da amizade, de Satti e Raul. E aos pouquinhos vamos descobrindo que Carmen gostava de Satti, que Raul ficou estacionado na frente do prédio com uma arma no carro, que Vinícius, de alguma maneira se envolveu com Satti, e tudo leva à desconfiança para o deputado Raul e por último descobre-se que o deputado Satti era gay. Apesar das provas não serem fortes, Raul acabou sendo acusado de assassinato e abalou as estruturas da cidade e da família. Tudo levou muito tempo para ser resolvido: a junção de provas, o indiciamento e julgamento. As crianças foram retiradas da escola.
Jesse retorna de viagem e Ciça conta que se envolveu com uma mulher, Kristen. Ele indignado, arremessa as chaves de casa nela. Se separam, e depois entram em discussão sobre o relacionamento.
Cecília sempre teve dificuldades em entender a mãe, em saber suas posições e agora em uma das conversas fica abismada com a posição política da mãe. A cada conversa, Cecília tem que se estabilizar, realizar um certo ritual para voltar ao seu normal. "É verdade. Porque entender esse país é entender a tolerância ao horror. Entender esse país é entender que subir a pirâmide significa pisar em escombros. Entender esse país é entender minha mãe criança aplaudindo Getúlio, depois dançando para o general Castelo Branco, depois exultante com a redemocratização que elegeu meu pai, depois sacudindo a bandeira verde e amarela em apoio a um capitãozinho saído dos esgotos do Brasil." (pg. 184)
Vinícius se envolve com um amigo, e o menino assustado, some. Ele então se deu conta que era “bicha” e começa a frequentar o Anjo Azul, um bar para pessoas como ele. "As bichas que já nasceram orgulhosas uma geração depois não entendem como a gente podia sentir essas coisas que às vezes era, sim, ódio de si mesmo. É que não tinha arco-íris, minha filha, era só porrada. Porrada e o pânico de morrer de aids." (pg. 238) E no bar descobre que Satti também o frequenta, e acaba indo para a casa do deputado. O pai toma conhecimento de que o menino ia ao Anjo Azul e à casa de Satti e então fica desesperado. Tudo leva a crer que os motivos do assassinato seria a partir do conhecimento de toda essa situação, da homossexualidade do filho e do amigo. Vinícius se drogava, se internava, e perdia nas matérias. "Ficou chocado. Mal havia descoberto o que era. Repetiu todos os dias no espelho, era uma coisa ainda tão íntima, não queria de jeito nenhum conceder ao pai o direito de classificá-lo." (pg. 254)
Raul foi indiciado e julgado, mas absolvido por 14 votos a 7. E a explicação de absolvição acabou recaindo sobre a escolha sexual do assassinado, além da falta de provas contundentes: "A suposta perseguição do indiciado, segundo ele, tampouco foi testemunhada por alguém; tratava-se de algo que de novo Satti havia reportado a terceiros, toda essa ficção tendo sido portanto engendrada pela vítima para assim conseguir esconder sua homossexualidade." (pg. 275)
Ciça resolve ir a Porto Alegre, depois de 16 anos de ausência, mais pelo irmão do que pelo pai. Vinícius é agora um homem de 46 anos e Ciça tem que entrar para visitar o pai. "Só me aproximo do meu pai e olho bem nos olhos dele." (pg. 283)
A ambientação do livro é excelente. A autora resgata com maestria os anos 1980, nos colocando no plano Cruzado I e II, falando das músicas, marcas de cigarros, cobertores, comerciais, filmes, hábitos e costumes de uma época. Aprendi mais sobre dioramas (me identifiquei, pois trabalhei com animais empalhados por 24 anos e vi muitos dioramas no Museu em que trabalhava). Estão presentes temas políticos além de abordar preconceitos e aids. Algumas críticas são contundentes, sobre os inseticidas e sobre ditadura.
Eu vivenciei muito os anos 1980 então é legal rever esses acontecimentos de que eu nem lembrava mais, tais como as maquininhas do mercado que remarcavam as mercadorias a toda hora, e havia os fiscais (compradores) na porta de supermercados, além das linhas telefônicas que eram passadas de herança. Eu tinha uma e meus irmãos também.
Ótima Leitura!