jiangslore 11/09/2023
[4/5]
"Yellowface" não só é um livro com uma premissa pouco comum como também é algo bem diferente dos livros que R. F. Kuang já publicou. Além disso, o livro aborda temas complexos de um modo não muito convencional. Todos esses fatores fizeram com que eu não soubesse muito bem o que esperar da obra, e, em alguns momentos da leitura, fiquei em dúvida sobre gostar do que a autora se propôs a fazer ou não. No entanto, após concluir "Yellowface", digo com certeza que gostei do livro. Existem críticas pertinentes que podem ser feitas, mas acredito que isso não muda o fato de que R. F. Kuang provou que a sua ousadia na escrita não é nem um pouco leviana.
Em termos de escrita, "Yellowface" é bem interessante. Isso porque, ao contrário de "The Poppy War" e "Babel", a narrativa é feita de um modo muito mais simples e contemporâneo. Na minha opinião, isso demonstra algo que eu já suspeitava sobre a autora - ela é muito boa em adaptar seu estilo de escrita para o assunto que pretende abordar e o tom que pretende dar a uma obra. Mas acredito que, mesmo se não for capaz de fazer tal comparação por não ter lido outros livros dela, o leitor vai gostar do modo envolvente e rápido que "Yellowface" é escrito.
Além disso, o enredo é majoritariamente interessante. Digo "majoritariamente" porque o livro é vendido como uma obra satírica e de thriller e acredito que apenas um desses dois aspectos foi executado de uma forma satisfatória: o da sátira. "Yellowface" trata várias questões importantes de um modo que é tão absurdo mas, ao mesmo tempo, tão realista, que a única opção além da falta total de esperança na humanidade é o riso. Por outro lado, o livro não teve, na minha opinião, um nível de tensão ou de mistério suficiente para ser considerado um bom thriller. Claro, há mistério e há tensão, mas eles são focados em poucos momentos da obra.
Mas acredito que o que torna o livro verdadeiramente interessante são as personagens principais: Athena e June. Apesar de o falecimento de Athena ocorrer nos capítulos iniciais, ela é uma presença marcante em toda a história. June, por sua vez, é a protagonista e narradora - o que é extremamente relevante, já que o livro é narrado em primeira pessoa. Ambas as personagens foram construídas de uma forma intrigante e complexa; que inclui qualidades e defeitos consideráveis.
June é uma pessoa, no mínimo, desagradável. E é óbvio que suas ações, desde o início do livro, não são moralmente corretas. Além disso, ela tinha uma visão terrivelmente racista do sucesso de Athena e de outros escritores que se encaixariam no conceito de "diversidade". Mas, apesar de ser odiosa, June não é apresentada pela narrativa como uma pessoa maligna, terrível, que só tem defeitos: nós vemos a paixão dela pela escrita, a sua determinação, seus traumas e as dificuldades que ela enfrenta com sua família. E isso é bom porque a verdade é que o fato de uma pessoa ser preconceituosa não a transforma em alguém que não possui qualquer qualidade. Se fosse assim, nós já teríamos conseguido nos livrar dos preconceitos em nossa sociedade há muito tempo.
Acredito que é importante deixar explícito que não ver June como um monstro completo não significa que a narrativa pretende que o leitor a "perdoe". June definitivamente não merece isso e não acho que o objetivo do livro é que o leitor a entendesse a ponto de não achar que ela fez coisas erradas. Na verdade, acredito que o objetivo é demonstrar que pessoas racistas como June não são monstros - são pessoas, que existem aqui, no mundo real. Elas não estão tão longe assim de nós.
Por outro lado, temos Athena. Apesar do ponto de vista de June ser enviesado, acredito que é possível perceber que Athena tinha sua cota de erros e não era, nem de longe, uma pessoa completamente inocente. O leitor pode observar suas qualidades e defeitos, seus acertos e ações questionáveis. E, assim como acontece com June, isso é importante para demonstrar que vítimas também são pessoas. Athena não é uma "vítima perfeita" porque não existe ninguém assim; e, na grande maioria das vezes (e só uso esse termo porque prefiro evitar generalizações), isso não muda o fato de que uma vítima é uma vítima.
Os outros personagens de "Yellowface" não são tão incrivelmente desenvolvidos quanto June e Athena, mas entendo que isso é proposital. Todos os personagens ocupam uma posição importante dentro do contexto da sátira e possuem o desenvolvimento mínimo que é necessário para isso. O fato é que "Yellowface" é um livro sobre uma hipócrita (para ser gentil) cercada de outros hipócritas; e mostrar as idiossincrasias desses hipócritas secundários é suficiente para entender a forma que a hipocrisia deles influencia, molda, critica e desinibe a da hipócrita principal.
E, com relação à hipócrita principal, há outras observações que devem ser destacadas. Uma crítica que vi ser feita à "Yellowface" é a possível confusão entre a voz de June, como protagonista, e a voz de Kuang, como escritora. O livro é bem "meta" em alguns momentos; e há uma parte na qual June tem a ideia de escrever um romance parcialmente autobiográfico, no qual os leitores não saberão o que é verdade e o que é ficção. Então penso que tal confusão não só é possível como também, até certo ponto, intencional. Isso é reforçado pelo fato de que algumas críticas recebidas por June foram anteriormente recebidas por R. F. Kuang - algo que só fiquei sabendo após concluir a leitura.
O problema, nesse contexto, é o fato de que June respondeu às críticas sérias que recebeu de uma forma muito negativa. E não seria legal pensar que a própria autora compartilha dessa opinião, né? Diante disso, entendo bem o desconforto de alguns leitores. No entanto, ele não corresponde à impressão que tive ao ler o livro.
Durante a leitura, pareceu-me que Kuang quis se colocar muito mais na Athena do que na June. Athena é uma autora chinesa que, assim como Kuang, obteve uma educação ocidental em instituições caras e renomadas. Ambas são autoras que tiveram acesso a várias oportunidades e explodiram no mercado muito jovens. Ambas tem como uma de suas principais temáticas o sofrimento. Nesse contexto, June seria uma voz de crítica à própria autora, mas, também, uma exposição de suas inseguranças.
Algo que contribuiu para essa impressão que tive foi o fato de que, em alguns pontos, June diz que algo que é criticado em "seu livro" (algum termo usado, por exemplo), foi escrito por Athena e não por ela. Acho que o ponto disso foi demonstrar que há muitas questões complexas quando se trata de raça, e isso significa que pessoas da própria etnia - como Kuang e Athena - não estão imunes às críticas do público. E parece que, a partir disso, o livro quer perguntar: se autores da própria minoria racial não estão imunes, será que é tão importante assim impedir que autores brancos escrevam sobre os mesmos temas? Não tenho certeza sobre a resposta para essa questão, não tenho certeza se concordo com a que o livro parece indicar. Mas acho que é um ponto importante que pode, sim, ser inserido na discussão.
Mas, é claro, isso são só minhas interpretações. Nunca saberemos quem está certo, ou quem se aproxima mais da realidade. Mas o fato de "Yellowface" ser um livro que proporciona tantas discussões, ao mesmo tempo em que é um livro que não traz visões positivas sobre a crítica literária, mostra que há, sim, uma complexidade na obra que não pode ser ignorada.
E é por isso que, apesar de tudo, eu gostei muito do livro. Com certeza recomendo a leitura.