Lucas Gui 06/01/2024
Encontro-me, hoje, entre dois prefácios, ou melhor, três. E que, de certa forma, me recordam da ironia de Borges, o que me permite arriscar em dizer de um “Prefácios, com prefácio de prefácios” ou ainda a de Nietzsche, com seus prefácios para livros não escritos. No ressoar de tantos textos, seria mais correto então dizer que, encontro-me entre prefácios e, no prefácio, como um labirinto.
Pensei, certa vez, que as epígrafes funcionavam como um fio de Ariadne que nos permitia, por vezes, uma saída e, outras, nos lançava às garras do monstro. Aqui, os prefácios cumprem esta função, mas certo seria dizer que, como uma corda atada ao tornozelo, impede-nos da queda total — o que não quer dizer que nos salva por completo: Aquiles sabe que o que nos prende ao chão também nos leva a perecer.
Parece-me que esses prefácios se reúnem em torno daquilo que Silviano Santiago chamou de “Grafias de vida — a morte”. A escrita nesse lugar entre o verbete da enciclopédia e as inscrições apagadas do cemitério, no qual se tem o compromisso entre fato e ficção por parte de quem escreve, ainda que “em termos de grafias de vida quase tudo é ficção”.
Dos prefácios, retomo, são três: o primeiro, escrito por Linda Gray Sexton, que precede o livro de poemas reunidos de sua mãe, Anne Sexton. O segundo e o terceiro encontram-se no mesmo livro: um escrito por Andrea del Fuego e outro por Maristela Guerra, personagem do livro de Liana Ferraz em “Um prefácio para Olívia Guerra”. Nesses prefácios, a filha assume a função inelutável de reunir os elementos, as poesias soltas e o que restou, da escrita da mãe; costurando com um fio de vida, as folhas soltas. Diante da perda, a tarefa quase impossível, que obriga a filha a se reconhecer ali, também como aquilo que restou da escrita da mãe.
Diante desses prefácios, refaço a pergunta que há muito me tenho feito: como escrever (sobre) a vida de alguém? Como “autobiografar” o outro? Como escrever a dor da filha na obra tangível da poeta? A escrita que, recusa a função do autor, permite uma filiação?
Contar sobre a solidão de ser portador de um luto infinito, escreve a personagem Maristela Guerra, calculando o som da queda, desse chão sempre à espera, e o dever de contar essa solidão, de escrever sobre ela, e também perdê-la, perder o mapa do futuro, do projeto, quando a idade da filha também ultrapassa aquele da mãe. A filha escreve:
“Eu sou um poema sem fim. E sem ter quem leia para criar um fim. Sou, portanto, a obra-prima de Olívia Guerra, se pensarmos em termos de performance, de construção complexa, de camadas afetivas e subjetivas. Sou eu, a filha, o resto da folha sempre por construir. Sua obra mais tola e mais genial”.
A filha, como a mãe-poeta em sua vida, não tem quem a lê. Motivo explícito de Maristela com os editoras da obra da mãe, que não chegaram antes, a ponto de salvá-la, e que agora grafam suas frases e rostos em camisetas, canecas e retratos. Não se ter quem leia, é decerto um fim.
Um fim, esreve Maristela Guerra, “mais uma herança de mamãe: o fim como o começo mais estrondoso”. O que fazer com o que se herda, mas que não se conta nos registros oficiais? Linda Sexton e Maristela Guerra escrevem um prefácio.
“O fim como o começo mais estrondoso” é decerto, o que exige um prefácio. O estranho paradoxo do prefácio é que, situado no início, decorrem da escrita de quem já percorreu a obra. Um prefácio pega o fio que conduziu a leitura e transforma-o em escrita. Ele não diz do inicio, mas do fio que conduziu o leitor até o fim. Aquela, ou aquele que escreve o prefácio coloca esse fio do fim, na escrita, para entregá-lo ao outro, ao leitor.
Essa entrega, esse endereçamento, ausente na escrita entre mãe e filha da obra de Liana Ferraz, como sublinha Andrea del Fuego em seu prefácio, uma “espécie de tratado sobre as páginas não escritas entre mãe e filha” está presente na carta que Anne Sexton escreve para a filha. Das páginas não escritas, há uma distância entre Maristela Guerra e Linda Sexton, no qual esta pode escrever a partir de uma grafia da mãe, um fio entregue pela mãe no enfrentamento do Minotauro, ali onde ela não podia mais continuar, mas que a passava com uma última esperança, desse fio, dessa grafia de vida.
“No dia em que me nomeou sua executora literária, ela me escreveu uma carta na qual confidenciou uma última esperança: Talvez, apenas talvez, o espírito dos poemas perdurem depois de nós duas, e um ou dois serão lembrados daqui a cem anos… e talvez não.”
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