mallulândia 23/12/2023
"o homem que amamos é um estranho"
Sou uma mulher mesquinha, e, com toda a sinceridade do mundo, não queria escrever uma resenha sobre este livro. Em verdade, o mero pensamento de outra pessoa lendo este livro (sendo minha conhecida ou não) é o suficiente para me encher de uma raiva infantil e profunda. Mas, este livro foi a melhor leitura do meu 2023, mesmo que tenha sido feita entre os dias vinte e dois e vinte e três de dezembro, mesmo que eu tenha lido outros livros encantadores ao longo do ano; "Uma Paixão Simples", da Annie Ernaux foi de longe a estrela mais brilhante. Assim, adianto, esta resenha é sobre mim e o que este livro me evocou, não fala muito sobre o livro em si, mas muito sobre mim e sobre Annie (que nesse ponto, já considero quase uma amiga)
Annie e eu temos alguns pontos de semelhança; somos duas mulheres brancas, heterossexuais, apaixonadas por homens (enquanto o homem dela, o A., é loiro, o meu é moreno, mas isso são detalhes). Annie passa o livro todo descrevendo a espera, o desejo, o cuidado e a sensibilidade da mulher apaixonada. E isso é um fato que confirmo e assino embaixo; a ideia de me maquiar para que ele veja, me vestir com cores para que ele repare, coisas assim. A mulher apaixonada por um homem é assim. Bem, nem todas as mulheres, apenas as mais loucas, obsessivas e poéticas, como Annie e eu.
Annie e eu vemos e vivemos a vida pensando nos homens que amamos. As coisas são meros intervalos entre um telefonema e outro, entre um encontro e outro, entre uma comunicação e outra, etc. E a priori, a ideia de que a minha vida tinha se transformado nisso quando me descobri apaixonada me foi terrível. Quis me matar. Como seria possível uma mulher independente como eu, emancipada como eu, viver a vida assim? Acontece que, o que este livro me mostrou é que estes dois fatos são distintos e não são mutuamente exclusivos. Ainda vivo a minha vida, faço coisas, sou excelente nas coisas, sou uma intelectualóide emancipada e mesmo assim, me apaixonei por um homem.
Um homem que, como o homem de Annie e como todos os homens do mundo, é um estranho. Sim, é fato, todos os homens que amamos são estranhos. Ela mesma diz isso. Os nossos homens não pensam e nós da forma que pensamos neles; eles não se vestem pensando em nós, não veem a vida pensando em nós, e definitivamente não pensam nos fatos como um mero interlúdio entre um momento conosco e outro. Isso tudo porque eles jamais foram socializados como mulheres.
Esses fatos antes muito me assombravam. Na minha cabeça de criança, existiam homens como os homens dos livros, que a todo tempo pensariam em mim, viveriam em minha função, etc. Homens assim não existem, não de verdade. A sociedade faz questão disso. Por isso que este livro me foi tão espetacular, tão essencial. Como Annie mesmo disse: "eu tinha mais sorte do que ele."
É verdade. Eu tenho mais sorte que o homem que eu amo. Eu posso viver a vida numa bela expectativa, num belo sonho, num breve interlúdio entre um encontro e outro. Ele não pode fazer isso. Ele não pode ver a vida nos mesmos tons de cor de rosa que eu vejo. Por isso, tenho mais sorte do que ele.
E a sorte é maior ainda porque eu sei que um dia, quando a minha paixão por ele acabar, viverei a vida lembrando dela, a todos os cantos, até outra me aparecer, e tudo recomeçar.