Marih 24/03/2024
A paixão Segundo G.H: um mergulho na própria essência
Clarice sempre foi conhecida pela densidade de seus debates e a poética de seu discurso, neste livro não poderia ser diferente. Nele a autora lança mão, não só de recursos expressivos que conferem mais profundidade na mensagem, mas também, de modo "velado", remete a teorias psicanalíticas, às perspectivas de outros literatos e, ainda, insere passagens bíblicas como suporte de suas reflexões.
G.H entra em conflito consigo pelo fato de estar no mundo como espelho do que os outros propõem e ela acolhe e, nesse sentido, é como se a existência escapasse de suas mãos, pois entende-se a partir do que percebem nela, a partir do seu ofício e não considera o que realmente é. Ela não sabe quem é. Perde-se na construção do que imagina ser, permeada pela visão do outro, por isso.
Contudo, quando emerge a paíxão (que na minha visão pode remeterà questão do sentimento amoroso, ao laço, mas principalmente à Paixão de Cristo, a nossa própria danação, escancarada a realidade como é - o sofrimento - os dias finais da personagem), pois é o momento em que, angustiada, despoja da ideia de ser e desaparece. Na visão do eu-lírico para ser é preciso aglutinar-se, despersonalizar-se, algo que rememora muito a visão oriental de ascensão espiritual, isso porque só seria possível sair da samsara (roda kármica do sofrimento) se compreendessémos que somos parte de um todo e deixássemos os desconfortos serem assistidos por nós e não vivenciados de maneira profunda, assim nos tornaríamos unívocos, seríamos o mundo.
"Como eu poderia dizer sem que a palavra mentisse para mim?" , G.H ressalta, ainda, que a linguagem não consegue traduzir quem somos, porque nós mesmos a ficcionalizamos, para suportar a existência; buscamos o sentido no conteúdo imagético-social e não na perspectiva de universialização do eu, devido a isso incorremos em sofrimento, pelo fato de não perceber a força do agora e que somos uma parte de um todo.G.H não compreendia que era parte de um todo e, justamente por isso, acreditava que era o que diziam os outros.
No momento em que a "patroa" entra em contato com o lugar do "subalterno" - que fala , indiretamente - aquele lugar visto como sujo e inferior, dentro de uma casa ordenadamente pensada, a faz entender o que é o nada . Reflete não só sobre a condição de sua funcionária que a havia deixado, mas também sobre sua própria condição, enquanto indivíduo. Ali a danação acontece. Ela reconhece sua ignorância . O seu medo de ir para a vida e sustentar o eterno vir-a-ser a paralizou diante da própria existência e ela só consegue se aproximar mais da ideia do que é viver quando se dispõe a romper o invólucro de si, de todas que vieram antes dela, pois ela representaria o todo. "Toda mulher é a mulher de todas as mulheres". O livro é um mergulho não só nos conflitos existenciais da personagem, mas nos nossos próprios. Indico fortemente este mergulho na essência.