Hannah Bastos 10/02/2021
Tornar-se Negro
Neusa Santos Souza foi uma psicanalista e psiquiatra negra brasileira comprometida com a militância e movimentos negros. Nasceu na Bahia e mudou-se para o Rio de Janeiro, local onde realizou um mestrado, do qual resultou a materialização deste livro-estudo. Em 1983, editou o livro "Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social". A autora expõe a relação do trauma emocional — e físico —, que está diretamente ligado à ascensão do negro dentro de uma sociedade racialmente hierarquizada como a brasileira; portanto, afiadamente pugnando o mito da democracia racial.
Em muitos momentos, o livro me transporta para as minhas próprias memórias e para o presente imediato. É um livro pequeno, contudo não se deixem enganar — a Drª Neusa é potente, é mulher negra, é militante que organiza o seu pensamento e discurso, parindo, desse modo, uma narrativa eloquente. Os depoimentos das pessoas negras em ascensão social contidos no livro são pedagógicos e, nos possibilitam entender a construção teórica que a autora demonstra ao longo do seu estudo. Notamos elementos em comum nos 10 depoimentos apresentados no livro, em que a ascensão do negro no Brasil exigiu uma separação desse individuo com a sua comunidade, o que gerou uma ascensão individual, na qual o afastamento da identidade/comunidade negra é versamente proporcional à aproximação da branquitude (não significando que sejam aceites por parte destes). Constituindo um profundo fosso entre os negros assimilados — os "negros-brancos" —, e os negros. O "negro-branco" que se considera em um patamar acima, utiliza o discurso da democracia racial para condenar e julgar os negros que não se "elevaram na vida". A fratura na comunidade é profunda, pois produz hostilidade e ilusões — crer na aceitação do negro como branco.
Para um leitor não familiarizado com alguns conceitos das ciências sociais (psicologia, psicanálise, sociologia), como foi o meu caso, pode sentir alguma dificuldade que, certamente não atrapalhará na leitura; pelo contrário, pode tornar-se um convite para mais pesquisas e estudos.
Considero que o contato que tive com o livro "Memórias de Plantação", da também psicanalista e artista negra Grada Kilomba, preparou-me para a linguagem do "Tornar-se Negro...", que me pareceu ser um mais academicista. Ambos os livros mergulham em uma temática de busca urgente pelo entendimento e necessidade da construção da negritude. As autoras utilizam método de estudo semelhante: estudo de caso a partir de depoimentos de pessoas que são entrevistadas. Contudo, cada livro tem as suas particularidades e abrem-se singularmente para outros elementos conectados com a busca da negritude.
É um discurso que revolve o emocional do indivíduo negro do começo ao fim, pois trata-se da demonstração de como, nós, sujeitos negros, nos vemos através da lente do branco como modelo, iniciando um teatro identitário, no qual o espelho, o Ideal a ser atingido, é branco. Assim, principia-se o tormento do sujeito negro — ter um Ideal (imposto) inatingível, que resulta em uma ferida na psique do negro, um desequilíbrio contínuo no emocional.
A ressignificação da perspectiva, valores e referências do negro se faz mais que necessária, configurando-se no reavivamento da sua história, a busca pela construção da sua identidade pautada "(...) a partir da voz de negros que, mais ou menos contratória ou fragilmente, batem-se por construir uma identidade que lhe dê feições próprias, fundada, portanto em seus interesses, transformadora da História — individual e coletiva, social e psicológica."
Esta leitura é um antídoto. Cada página pede reflexão. Sinto que voltarei para esta leitura outras vezes, pois acredito em um processo de transformação contínua. Uma leitura imprescindível para perceber a construção da subjetividade do negro no Brasil.
" Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro."