Brunífero 12/03/2022
É preciso mudar muito para permanecer igual
Se você joga videogame, com certeza você já deve ter se deparado com duas frases muito marcantes: uma abre os jogos da franquia Fallout, "A guerra nunca muda", e outra é dita em Metal Gear Solid 4, "A guerra mudou", pronunciada pelo (agora idoso) Solid Snake. Apesar de muitos fãs antagonizarem as duas frases, elas na verdade se alinham perfeitamente. A ideia de "A guerra nunca muda" é que a essência do conflito sempre foi, é e será a mesma, e que os humanos sempre viverão com a essência da guerra dentro de si. "A guerra mudou", por outro lado, vai para um sentido mais materialista da coisa. Na ficção científica de Metal Gear, a guerra foi automatizada e banalizada. Nanomáquinas (sempre elas...) servem unicamente para propósitos bélicos, e qualquer pingo de ideologia nacional ou ideologia foi subtraída pela sede insaciável de lucro. Nesse sentido, a guerra mudou, sim. Mas, como alguns tem a chance de descobrir, certas coisas nunca mudam.
Em meados dos anos 70, dizer que a moral estava destruída seria pouco. A guerra do Vietnã devastara a juventude do país, a primeira crise do petróleo fora deflagrada e a economia americana desacelerava, o escândalo de Watergate derrubou Nixon... enfim, tempos pessimistas. As convulsões sociais americanas obviamente estão refletidas na literatura, em particular, no movimento New Wave da ficção científica, uma vanguarda literária que propunha olhares críticos em relação ao futuro, à ciência e aos valores morais da época. Foi nessa vanguarda e nesse contexto que Joe Haldeman, sobrevivente da Guerra do Vietnã e transtornado pelas condições da época, viria a escrever Guerra Sem Fim. Inicialmente um romance único (depois haveriam sequências, que ainda não foram trazidas pro Brasil), Guerra Sem Fim foi um terremoto na comunidade de ficção científica e fantasia, arrebatando todos os prêmios do meio. E quando a prestigiosa coleção britânica Science Fiction MasterWorks estreou no mercado editorial anglo-saxão em janeiro de 1999, A Guerra Sem Fim, junto de Eu Sou a Lenda, deram os pontapés iniciais. Mas, afinal, o que há de tão importante nesse livro? Já não existiam livros anti-guerra antes? Sim, mas nenhum como esse.
No distante ano de 1997 (risos involuntários), o jovem William Mandella é recrutado pela Força Exploradora das Nações Unidas, um equivalente intergaláctico da ONU, e seu trabalho é servir de soldado para confrontar os (ditos) horripilantes Taurans, uma raça alien que estaria ameaçando a expansão da humanidade. O conflito não é limpo: os soldados são manipulados moral e até geneticamente para lutarem contra os Taurans sem piedade. Depois do treinamento, os soldados embarcam em naves "colapsares", que quebram a velocidade da luz e conseguem ir de um ponto a outro da galáxia, porém com a já conhecida dissonância que a velocidade da luz cria, ou seja, algo que para o viajante leva poucos anos é décadas para o terrestre. É sobre essa premissa que o enredo se desenvolve.
O choque da guerra certamente não é novidade, mas um choque verdadeiro nunca o deixa de ser mesmo que se repita. A primeira frase do livro já denota muito bem qual o tipo de mundo que William está enfrentando. Que tipo de socialização ele teve. E é justamente as percepções de seu protagonista que torna Guerra Sem Fim ainda mais visceral. Ao longo da trama, a jovialidade de William é destruída pela guerra, pelas mentiras de seus superiores. No entanto, ela é um poço sem volta, simbolizado brilhantemente pela dilatação temporal. Em um dado momento, William consegue retornar à Terra, apenas para encontrar tudo diferente, agora no ano 2024. O choque cultural e econômico da Terra reflete a própria transição cultural dos anos 60 para os 70, cujas mudanças significativas não foram acompanhadas pelos soldados do Vietnã, que estavam fora combatendo, e pelo clima pessimista da época, as mudanças retratadas no livro são todas para pior. Lamentavelmente, uma delas é a expansão de uma homossexualidade puramente hedonista e escapista, muito em decorrência da homofobia vigente na época (e ainda hoje). Mas nem tudo é tragédia; durante a aventura, William ainda tem a chance de conhecer um grande amor, Marygay (numa alusão muito mal disfarçada da esposa real do autor), combatente da infantaria e que também se apaixona por William. O núcleo romântico no enredo acaba por ser um balão de oxigênio numa história que está sempre a um passo de descambar para o trágico absoluto, mas algo o impede. O amor, ou qualquer traço de humanidade restante num ambiente tão brutal quanto a guerra.
A escrita de Joe é bem limpa e coesa; tudo tem seu tempo e nada é mal desenvolvido. Narrativamente falando, podemos dizer que não há a sensação de fadiga ou autoindulgência pela qual as obras da New Wave acabaram malfadadas (se merecidamente ou não, desconheço). Isso não apaga o horror da guerra retratada aqui, modernizada e ainda mais corrompida pelas novas motivações, mas estranhamente familiar e quase inalterada. Um assunto que pode ser tão repetido e ainda soar tão fascinante é algo pouco repetido na literatura - claro, desde que esteja nas mãos e nos olhos certos.
*Li na 2ª edição, da editora Aleph (houve uma primeira por uma editora nanica, que passou despercebida e que desapareceu pouco tempo depois) e seu usual esmero, com capa dura e folhas de boa gramatura. Há uma introdução do autor, um prefácio de 2005 John Scalzi (outro importante autor de Sci-Fi militar) e outro do próprio Joe Haldeman em 1996, além de um necessário pedido de desculpas do próprio sobre a má representação LGBTQIAP+ a pedido dos editores brasileiros. No fim do livro, há só uma notinha com um pequeno perfil do autor.