davidelira 13/09/2021
Hilda Hilst e a imaginação pornográfica
O Caderno Rosa de Lori Lamby é o primeiro de três livros de Hilda que compõe o que ela chamava de “Adoráveis Bandalheiras”, sua “tetralogia obscena”, uma fase posterior do trabalho da escritora, quando esta decidiu deixar de escrever literatura “séria” e produzir textos pornográficos. A autora resolveu embarcar nessa empreitada após notar o quanto seu trabalho era desvalorizado no país. Seus livros não eram reeditados, sendo esquecidos pelo grande público. Apesar do fascínio que a autora exerceu, principalmente no cenário acadêmico, seu trabalho permaneceu como um estranho ao mercado editorial. Era taxada de hermética, sendo rotulada de “esfinge da literatura”. Isso não agradava Hilda que tinha fome de ser lida. Dentro dessa desvalorização de seu trabalho, Hilda, inspirada em grandes nomes da literatura erótica como Henry Miller e Bataille, escreveu o seu Lori Lamby.
Mas o que é a literatura pornográfica? Susan Sontag em seu ensaio “A imaginação pornográfica” discute a pretensa separação entre a literatura como arte e a literatura pornográfica. Essa cisão buscava proteger a literatura “séria” (como diria Hilda) frente às elucubrações de uma literatura pornográfica, que se basearia numa motivação do autor de estimular o leitor pela via sensorial. Uma literatura que excita. Porém, o ensaio de Susan irá contra argumentar essa ideia a partir de um mergulho na literatura libertina, passando por nomes como Sade e Bataille. A pornografia aqui não atua como um mero estímulo à excitação, mas como um receptáculo que passa adiante uma experiência para além da resposta na via epidérmica. Nas palavras de Hilda “a verdadeira natureza do obsceno é a vontade de converter”. Muitas vezes, no fundo da literatura libertina encontramos uma premissa espiritual. Espiritual no sentido do que Susan chama: “planos, terminologias, noções de conduta voltados para a resolução das penosas contradições estruturais inerentes à situação do homem, para a perfeição da consciência humana e a transcendência”. As intensas, catalográficas e tortuosas descrições de Sade em seu 120 Dias não se encerram no artifício da excitação, Sontag aponta que seu escrito traz consigo ideias como as “da pessoa como ‘coisa’ ou objeto, do corpo como máquina e da orgia como um inventário das possibilidades esperançosas e infinitas de várias máquinas em colaboração umas com as outras”. A literatura pornográfica vista como arte subverte seu próprio gênero.
Todavia, Hilda não pretende passar necessariamente uma filosofia ou um projeto de espiritualidade em seu livro. O que ela subverte no comum do gênero pornô é a utilização do recurso da alegoria. É o uso da metáfora para a construção de uma alegoria. Mas como se dá isso? O Caderno Rosa de Lori Lamby segue o relato de uma menina de 8 anos que conta em seu diário sua vivência com a sexualidade. Premissa chocante que adquire contornos cada vez mais incômodos e perturbadores no decorrer das páginas. É um texto cru, escrachado e imoral. Enfim, uma grande putaria. A ingenuidade e puerilidade na forma do texto infantil contrasta com o conteúdo adulto e obsceno contido nele. É um livro que desperta nojo, mas que ao mesmo tempo nos revela um indecoroso fascínio pelo absurdo. Falo aqui que esse texto salta para além do pornô por ser ele uma analogia com a própria receptividade do mercado editorial ao trabalho de Hilda. A figura do pai de Lori que é um escritor que começa a escrever literatura pornográfica, por ser cobrado por parte de seu editor, acrescenta camadas metalinguísticas ao texto. A própria imagem da exploração sexual é usada como analogia a essa “prostituição” ao mercado editorial.
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Um livro que adorei odiar. Principalmente quanto à revelação no final que deu um grande giro em todo o plot dessa narrativa. Destaque também para um conto pornográfico dentro da própria obra, totalmente absurdo e engraçado. O Caderno Rosa de Lori Lamby é um livro para poucos, e para os que têm muito estômago.
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