Pandora 13/04/2023Ah! Nada como os mineiros para narrarem histórias sobre casarões e tragédias que levam à derrocada as famílias que neles habitam. Vide Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.
Ópera dos Mortos, considerada a obra-prima de Autran Dourado, foi publicada pela primeira vez em 1967. Faz parte de uma trilogia que inclui também Lucas Procópio (1985) e Um cavalheiro de antigamente (1992), que embora tenham sido lançados depois, tratam de eventos anteriores aos descritos em Ópera dos Mortos.
O livro conta a história de Rosalina Honório Cota, herdeira de João Capistrano, por sua vez herdeiro de Lucas Procópio. O avô tinha sua importância como fundador da cidade, mas era temido e odiado por muitos. Violento, violador, quando morreu foi um alívio para todos. Já o pai de Rosalina era sério, correto e querido pelo povo, até que um dia decidiu meter-se na política e ingênuo nas manobras do ramo, foi traído nas eleições, fechou-se completamente e rompeu com todos, exceto seu compadre Quincas Ciríaco.
Numa casa em parte construída a mando de Lucas (o térreo), em parte complementada por João (que a torna um sobrado), agora sem manutenção e fechada para visitas, Rosalina vive com a empregada Quiquina, negra, muda e uma espécie de mãe para ela, sua ponte com o povoado com o qual ela pessoalmente não interage, a não ser com Emanuel, filho de Ciríaco - que vê uma vez por ano - e através das flores de papel e de pano que faz e Quiquina vende por aí.
Apesar de no passado ter se enamorado de Emanuel, Rosalina nunca se casou para não abandonar o pai, que no dia da morte da mulher, Genu, ao ver a casa cheia de gente que viera tentar uma reconciliação, simbolicamente para um relógio-armário que todos admiravam, mostrando assim que tudo havia acabado, que seu rompimento com a cidade era definitivo. Quando ele morre, a filha faz o mesmo, parando outro relógio e trancando-se no sobrado.
Um dia chega à cidade José Feliciano, o Juca Passarinho, que procura por uma atividade rentável que não tome todo o seu tempo e encontra no casarão da família Honório Cota sua oportunidade, já que a propriedade precisa de reparos dos quais Quiquina não dá mais conta e Rosalina não quer contratar nenhum local, já que herdara do pai o ressentimento pela “gentinha” do lugar. Juca, homem alegre e falador, contador de causos, faz logo conhecidos na cidade, sai pra todo lado e traz ânimo e barulho para aquela habitação sempre tão silenciosa; traz vida. Porém, também desperta sentimentos e sensações adormecidos. A dinâmica há tanto tempo estabelecida entre aquelas duas mulheres sofre um abalo.
Segundo o próprio Autran Dourado, em seu livro Uma poética de romance: matéria de carpintaria, a primeira ideia para o seu livro surgiu da frase “É preciso enterrar os seus mortos”, uma reminiscência de Antígona, de Sófocles. E alertou: “Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura. Os mortos de Rosalina e os mortos de Antígona. Os mortos-vivos”.
Os mortos, neste romance, permeiam toda a narrativa: seja nos conflitos de Rosalina, que ora vê em si o pai, ora o avô e sacrifica o viver, isolando-se, orgulhosa, a fim de demonstrar à cidade o desprezo imposto por João Capistrano; ou seja nas lembranças de Juca Passarinho, que sonha com o padrinho Lindolfo, sua mulher Vivinha e o menino Valdemar; eles que atuam como sua consciência. Os relógios parados no casarão mostram que a vida estancou lá atrás.
A narrativa toda é de um esmero linguístico e construção de personagens apurada, mas destaco no capítulo 7 a maestria com que Autran Dourado nos transmite toda a angústia da personagem após uma situação embaraçosa em que ela temia reencontrar os envolvidos. Quem já passou por isso sabe como é difícil e como tentamos achar uma saída a fim de evitar o confronto, pensamos em opções tão ridículas quanto absurdas, porque na verdade queríamos apagar o acontecido. Até que precisamos encarar a verdade e as pessoas.
E como encarar a verdade e as pessoas quando é necessário, para Rosalina, perpetuar a figura mítica que se tornou, a dama quase etérea, cujas humanidades são desconhecidas de todos?
Escreveu Autran: “Não é apenas um livro do passado imperfeito, nele não há (só se foi por descuido) verbo no futuro. Como não há futuro para Rosalina. É sempre “vou fazer“, nunca “farei“. Dizer o futuro é afirmar-se, é sair do passado, do mundo dos mortos, é ser.”
“Mortos insepultos continuam assombrando os vivos; enterrar os nossos é nosso direito e dever.” (Regina Liberato, psico-oncologista, no artigo Enterrando nossos mortos dentro de nós.)
Livro maravilhoso que recomendo fortemente.
Notas:
1. Entre os escritores que contribuíram para sua formação literária, Autran Dourado citou William Faulkner. Seu conto A rose for Emily, de 1926, é sobre uma aristocrata falida de uma cidade fictícia do sul dos Estados Unidos, pós guerra civil, que vive reclusa em seu casarão, tendo somente um empregado negro e que se envolve com um trabalhador chegado do norte após a morte de seu pai.
2. Em sua dissertação de mestrado, “Casas e rosas: metáforas da (re)criação literária em Ópera dos Mortos e A Rose for Emily”, Fernanda Mendes Oliveira Figueiredo faz uma análise comparativa das duas obras, buscando “explanar as semelhanças entre as narrativas, o processo de construção dos escritores e a constituição da tradição individual”.
3. Ópera dos Mortos está entre as obras listadas na Coleção de Obras Representativas da UNESCO (projeto que funcionou entre 1948 e 2005). Visava traduzir da língua original para uma língua internacional (inglês ou francês) obras representativas da cultura de um país.
4. Autran Dourado escreveu romances, ensaios, memórias, contos e artigos e foi agraciado com os prêmios Goethe de Literatura, Jabuti, Camões e Machado de Assis. Faleceu em 2012.