Felipe - @livrografando 08/12/2020
Em cada canto do mundo há uma Antares
Em 2013, aos 16 anos, peguei esse livro emprestado da biblioteca da minha escola para ler pela primeira vez. Ao longo da leitura, comecei a enfrentar dificuldades de entendimento e compreensão da leitura, pelo fato de Verissimo lidar com acontecimentos históricos que ainda não havia estudado. Consequentemente, a leitura fracassou e fui obrigado a abandonar a narrativa. Sete anos depois, já formado em História, resolvi dar uma nova oportunidade e eu digo com todas as letras: que livro estupendo! Em todos os sentidos: personagens, temáticas, texto, narrativa, construção da história, de verdade, uma grata surpresa. Com um texto dinâmico (e inclusive na primeira parte também), com acontecimentos instigantes que despertam o interesse do leitor e, de quebra, personagens e diálogos primorosos e que retratam a realidade política do Brasil nos anos 1960 (ou será 2020?), Incidente em Antares deixa uma certeza no leitor: a humanidade, a despeito de tantos acontecimentos que a marcaram negativamente, simplesmente os relega ao esquecimento, acabando por persistir nos seus erros.
Incidente em Antares tem como foco central a rivalidade entre os membros do clã Vacariano e Campolargo, que perdura por sete décadas, justificada pelo fato de a chegada dos Campolargo diminuir o monopólio da autoridade de seu adversário, acabando por criar uma cultura da violência, a qual consiste em qualquer coisa ser resolvida a base de agressões físicas ou tiros. Com a chegada de Getúlio Vargas, com o seu poder de persuasão, dentro das suas pretensões políticas, apresenta uma proposta de paz, conseguindo findar décadas e décadas de desentendimentos entre as famílias envolvidas no conflito, acabando por criar um novo tipo de relação entre eles, na figura de Tibério Vacariano e Benjamim Campolargo. O elo que une os dois são as suas esposas, Quitéria Campolargo, esta uma acurada observadora dos acontecimentos políticos não apenas em Antares, mas também no Brasil, por sua vez, expressando suas opiniões e pareceres a respeito deles, e Briolanja Vacariano.
No ano de 1963, no dia 11 de dezembro há uma greve dos coveiros, reivindicando por melhores condições e melhores salários, sendo cortado o telefone, a água, a luz e outros serviços essenciais para o funcionamento do município. Enquanto isso, no cemitério, há sete corpos que estão a espera de serem enterrados. No entanto, com a greve deflagrada e com a veemente recusa dos coveiros em retornarem ao trabalho do sepultamento, os mortos resolvem se vingar levantando-se de seus féretros e indo até a praça principal da cidade, levando consigo um forte odor de carne apodrecida e decomposta, além de fazerem revelações comprometedoras a respeito dos moradores da pequena comuna gaúcha, abalando reputações de pessoas antes vistas como ilibadas, refletindo até no próprio prefeito da cidade, e sendo testemunhada por um jornalista, de modo a dar visibilidade ao minúsculo município. Será que Antares será reconhecida nacionalmente por causa desse evento ou apenas não passará de uma alucinação coletiva, sendo relegada ao simples esquecimento?
Incidente em Antares possui um texto primoroso, muito bem encadeado com os personagens, com as descrições. Erico Verissimo lida com a difícil tarefa de tratar um período muito delicado da história do Brasil: o varguismo. O autor imprime tanto realismo e tanta vivacidade aos acontecimentos históricos, que dá a entender que esses acontecimentos reais compõem a história do livro, indo de encontro a muitas resenhas que, de forma muito superficial e rasa, alegam que a parte histórica do livro pode ser facilmente suprimida na leitura, em detrimento do adiantamento do incidente, mas desse ponto vou tratar um pouco mais adiante. Sem parecer piegas ou didático demais, Verissimo, com o dom de narrar histórias, consegue tornar sua narrativa dinâmica, sem ser atropelada, transitando de forma magistral entre as descrições e as ações, também se constituindo em um grande acerto no texto de Verissimo.
A estrutura narrativa do livro se divide em duas partes: a primeira, apresentando um pano de fundo histórico que se a trama se desenrola e a segunda, que de fato narra o incidente. Conforme já antecipei, considerar a primeira parte apenas por se tratar de mera narração histórica para poder situar o tempo do romance é, para dizer o mínimo, uma avaliação muito primária da obra, pois, nesse primeiro momento do romance, não apenas o caráter dos personagens vai sendo construído, sendo transmitido de geração em geração, como também precisamos compreender a trajetória da cidade de Antares, a fim de perceber que, apesar dos hábitos e costumes modernos, urbanos, o modo de pensar ainda se constitui como tradicional, atrasada, rudimentar, coisa que se perceberá sobretudo na segunda parte do romance, onde haverá certas revelações que farão com que a reputação de certas pessoas do município caia em ruínas, mas, a despeito de todas essas revelações, elas não serão suficientes para transformar a estrutura da sociedade.
Quando eu li a descrição dos personagens da trama, fiquei pensando se essa história realmente foi escrita nos anos 1970 ou nos dias atuais, pois Incidente em Antares emula grande parte do pensamento conservador e reacionário da elite brasileira, consubstanciada na figura de Quitéria Campolargo, principalmente no momento em que ela concede uma entrevista a um grupo de pesquisa que está fazendo um diagnóstico acerca de todos os aspectos da cidade limítrofe, ao final da primeira parte, aonde ela diz que o lema do município deveria ser Deus, pátria e família. Neste momento, Verissimo faz uma clara alusão a manifestação da extrema-direita de 1962, intitulada “Marcha com Deus, pela pátria e pela família”, o que foi muito louvável, pois Verissimo faz questão de retratar a classe proprietária sulista como o elemento mais ultra conservador do Brasil, sendo responsável pelo entrave ao desenvolvimento do país.
Em contrapartida, às vésperas do incidente, aparece na narrativa o jornalista Lucas Faia, responsável pela cobertura do espetáculo transcendental que ocorre na praça matriz de Antares. Mesmo tendo a disposição uma filmadora, o aparelho nada capta do momento emblemático, restando apenas ao jornalista escrever sobre algo que não apenas ele, mas toda a Antares presenciou. No entanto, tal ideia é amplamente rechaçada não apenas pelos setores mandatários de Antares, mas por toda a população, desperdiçando uma oportunidade, segundo o próprio Faia, de tornar Antares muito mais reconhecida nacional e, quiçá, mundialmente. Faia é o explícito retrato de como os setores intelectuais sofriam com o constante amordaçamento que o regime militar impunha às camadas intelectuais da época, pondo em causa pesquisas científicas, trabalhos infundados em dados minuciosamente levantados, como o exemplo do livro fictício que é lançado a respeito da população de Antares.
Conservadorismo, reacionarismo, analfabetismo político, censura política, mandonismo local, sociedade patriarcalista, entre outras temáticas, se sobressaem na narrativa do romance, mas é igualmente importante destacar a questão da memória e do esquecimento, das disputas que esse campo engendra, reforçando a atemporalidade da temática. Incidente em Antares provoca um certo desconforto no leitor devido a algumas falas datadas, mas mais desconforto ainda é saber que tais pensamentos ainda se encontram presente no nosso cotidiano.
Mais do que um romance em si, Incidente em Antares é um desabafo de um escritor totalmente inconformado com a realidade na qual se encontra. Encontramos um Erico Verissimo totalmente desiludido, entregando-se ao pessimismo, conforme Martim Francisco Terra, ao final da primeira parte, num diálogo de arrepiar, abordando o puro sumo do conservadorismo mesquinho e ferrenho da sociedade brasileira, pouco disposta a ser transformada, quando ele diz que todos nós temos um troglodita interior e que, quando ao mínimo estímulo, vem à tona, se apodera de nosso ser e que se transforma num “déspota totalitário capaz de todas as bestialidades”. Escrita nos anos de chumbo, a obra reflete muito sobre a veemente censura política que os intelectuais sofriam com um regime pautado na ignorância e na preservação dos velhos costumes a qualquer custo. Infelizmente, quase 50 anos depois da publicação da obra, percebemos não apenas o forte retorno desses pensamentos como também uma crescente adesão a esses ideais, tornando a obra uma leitura necessária justamente pela sua atemporalidade e pela sua (infelizmente, devo admitir) atualidade.