João Moreno 25/09/2020'Incidente em Antares' ou 'Brasil: uma biografia'?
Sou viciado em redes sociais. Para regular o vício, condicionei o acesso à essa bosta [Twitter] à leitura de um livro. De ontem (24/9) pra hoje (25/9), li quase duzentas páginas de 'Incidente em Antares', de Érico Veríssimo. Óbvio que, para além da tentativa de voltar ao vício, a qualidade do texto, os capítulos curtos e a quantidade de diálogos ajudaram a regular a velocidade com que conduzi a leitura.
Pensei em escrever um longo texto, mas desisti. Por que é tão difícil falar de 'Antares'? Talvez, porque, antes de literatura, trate-se de História do Brasil. 'Antares' é o pretexto de Veríssimo (1988) para narrar a nossa formação social: do colonialismo, que permitiu a formação dos Coronéis [1] (os quais disputaram, a ferro, fogo, tortura e extermínio, o poder e a sua perpetuação. Neste caso, a perpetuação do poder numa uma pequena cidade) até a naturalização de suas condições [de senhores, donos do mundo!] frente às desigualdades geradas perante a concentração do poder político, econômico e territorial.
Sim, é a tal luta de classes, por mais que queiramos classificá-la como "teoria do século XIX", arcaica, démodé etc.
"– Mas o seu reino acabou – retorquiu o rapaz. – O senhor é um dos últimos representantes do velho coronelismo no Rio Grande do Sul.
Tibério ficou por um instante pensativo, a fumar, e depois murmurou:
– Pode ser. Mas ainda não morri. E enquanto me restar um pingo de vida ninguém me pisa no poncho. Hei de defender as minhas idéias com as armas que tiver.
– Mas que idéias? – provocou-o o neto.
– Não sejas bobo, menino. As minhas idéias são as minhas propriedades, o meu sossego, a minha vida, este crioulo, as coisas que sempre gostei de fazer e, acima de tudo, a minha liberdade. Não vou entregar nada do que é meu a esses comunistas de merda, declarados ou disfarçados.
– E que me diz da liberdade alheia? E do bem-estar dos outros? – perguntou Martim Francisco.
– Ora, professor, que cada qual cuide da sua vida. Quem for mais capaz e mais macho vence. É a lei do mundo. Sempre foi.
– E por quanto tempo o senhor e os de sua classe imaginam que podem manter os seus privilégios?
– Espero morrer antes da vitória da canalha.
– Mas isso que o senhor chama de canalha – observou Martim Francisco – constitui a maioria do povo brasileiro.
– Haja o que houver – disse o velho, piscando um olho – temos um trunfo escondido.
– O Exército?
– Adivinhou. Você não é tão burro como parece" (VERÍSSIMO, 1988, p. 469-470).
Está tudo em 'Antares':
1) a exclusão do povo dos processos decisórios (notem que são poucos os excluídos com voz, na narrativa. Babilônia, a grande favela, por exemplo, é discutida 'por cima'. (E no Brasil real é diferente?);
"– Decaída? Por que não diz logo puta? – Leva a mão em concha ao ouvido. – Creio que ouvi murmúrios do respeitável público, chocado pelo nome “horrível” que acabo de pronunciar. Quatro letrinhas. P-u-t-a. O meu colega Dr. Mirabeau gaba-se de conhecer os quarenta sinônimos que o imortal Rui Barbosa descobriu para prostituta, mas parece não se impressionar com a prostituição propriamente dita. Claro! Vossa moral é puramente verbal. O delegado Pigarço estará sempre pronto a prender como subversivo todo aquele que escrever com realismo sobre as misérias da nossa Babilônia e outros antros de indigência, mas essas favelas propriamente ditas não preocupam a burguesia. Aquilo sobre que ninguém fala ou escreve não existe. Se um espelho reflete um ato e um fato que consideramos escandaloso, quebramos o espelho e voltamos as costas para o ato e o fato, dando a questão como resolvida. Neste país quase todos os problemas políticos, econômicos e sociais são solucionados no papel. Meu caro Dr. Mirabeau, queira ou não queira Vossa ‘Excelência, vai falar agora a puta Erotildes" (VERÍSSIMO, 1988, p. 362).
2) a hipocrisia das classes conservadoras, mais para Juremir Machado, com seu 'Raízes do Conservadorismo Brasileiro', do que as fanfics (sic) escritas por Roger Scruton ("conservadoras, não! Produtoras!");
"– Todos sabem que o Cêl. Tibério é o presidente de honra dos Legionários da Cruz, cujo lema é Deus, Pátria, Família e Propriedade. Ora, as relações de nosso furibundo pró-homem com Deus são só de cumprimento, de longe, apenas um toque de dedo na aba do chapéu. O velho Vacariano não reza, não vai à missa e nem se confessa, e durante toda a sua gloriosa existência teve incontáveis oportunidades de transgredir os dez mandamentos. Pátria? A flor dos Vacarianos ama tanto a sua, que tem passado a vida a lesar os cofres públicos e a mamar nas tetas desta pobre república. Ah, mas com a família o caso é diferente! O Cel. Tibério preza tanto essa instituição, que em vez de uma mulher tem duas: a legítima, que vive no palacete que vemos ali na esquina, e a ilegítima, instalada numa outra casa e numa outra rua. Agora, acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender as suas propriedades, aumentãndo-as à custa da propriedade alheia. Daí o seu sagrado horror a qualquer mudança do presente status quo político, econômico e social que tanto lhe convém." (VERÍSSIMO, 1988, p. 355).
3) a violência das autoridades, as quais existem para garantir a lei, a ordem e a propriedade privada dos meios de (re)produção social!;
“– Na minha opinião esta é a hora certa para o golpe – afirmou Tibério.
Quitéria ergueu os olhos para ele:
– Golpe de quem contra quem?
– Das Forças Armadas, para impedir que o Juscelino e o Jango tomem posse!
– Mas se eles foram eleitos pela maioria do povo e reconhecidos pelo Congresso! Estamos numa democracia, homem de Deus!
– Qual democracia! – replicou o Cel. Vacariano.
– Vivemos numa cafajestocracia, isso é que é. Se dependesse de mim, eu puxava na corrente da descarga para toda essa porcaria ir-se cano abaixo (...)
- Mas vocês não compreenderam ainda – replicou – que se não tomarmos o poder agora estamos perdidos? Quem vai governar mesmo no próximo qüinqüênio é o Jango e o maluco do cunhado dele, o Leonel Brizola. Os dois, mancomunados, continuarão manobrando os sindicatos, encorajando as greves, fazendo passar mais e mais leis favoráveis aos seus eleitores e “pelegos”, aumentando o salário mínimo, em suma, estrangulando cada vez mais as classes produtoras. Vamos acabar no socialismo!” (VERÍSSIMO, 1988, p. 94-95).
4) as hierarquias sociais, que se reproduzem, apesar do discurso meritocrático (escondido, mas presente na forma como os privilégios (positivos e negativos) são repassados às mesmas famílias, geração a geração).
"(...) Faça-se justiça ao nosso truculento Cel. Vacariano, pois ele ostenta com naturalidade e coragem cívica o manto antipático do poder discricionário, que herdou de seus ancestrais, dessa estirpe de bandidos, abigeatários e contrabandistas históricos ..." (VERÍSSIMO, 1988, p. 342).
Se na primeira parte a História do país é romanceada através do desenvolvimento da cidade de Antares e de suas personagens, na segunda tem-se uma retomada, rebuscada, é verdade, dos acontecimentos que precederam a Ditadura Militar, a escrita de Veríssimo (1988) passa pelos porões do DOI-CODE à conivência dos jornais com os acontecimentos (se ninguém notícia, obviamente, o fato não existe, na Opinião Pública, não é mesmo Jornal 'A Verdade'?, rs).
Assim, é interessante perceber a adequação da História e da Memória Coletiva aos interesses dos poderes constituídos: como foi possível esconder a mobilização social por melhores condições de trabalho? Esconder os desvios das elites os quais garantem o status quo? A aparição dos mortos? Os desvios da Lei para garantir a Ordem (excludente, mas é claro)? A democracia não democrática?
Dito isso, e eu disse pouco e mal, o maior problema de 'Antares' é a sua atualidade. Quase 50 anos depois (a obra é de 1971), é possível perceber que, de tão atual, fora os "sete mortos", no parágrafo anterior, não saberia dizer se estava me referindo à Antares ou ao Brasil de 2020. Voltando às comparações entre 'Antares' e o Brasil "redemocratizado" (sic), afinal, quem não conhece, hoje, em 2020, uma favela igual à Babilônia ou um Coronel Vacariano? (No meu estado, virou governador!).
Por fim, gostaria de registrar que ganhei o livro em 2015, um presente de aniversário da grandíssima amiga Luana Alves, hoje jornalista, à época universitária. Foi a 'leitura do ônibus' e da espera em filas de banco enquanto resolvia pepinos referentes a projetos culturais patrocinados via Lei de Incentivo. Talvez, se tivesse lido ainda em 2015, não teria aproveitado tanto. Virou favorito.
site:
https://literatureseweb.wordpress.com/2020/09/26/incidente-em-antares-ou-brasil-uma-biografia/