Paulo 02/12/2021
Adaptar um livro para quadrinhos é sempre uma tarefa complicada porque exige não apenas o conhecimento dos detalhes da obra, mas compreender o coração daquilo que foi contado. Na maior parte das vezes, a quadrinização fica aquém do resultado proposto. O que chega a nós com mais destaque são aqueles quadrinhos que são diferentes em algum ponto, seja na forma de adaptar ou na precisão do que foi adaptado. Eloar Guazzelli é alguém que trabalha há muito tempo com a arte de adaptar obras de ficção para quadrinhos. E ele tem como principal características não apenas traduzir bem as cenas e os diálogos, mas compreender a essência da história. Aquilo que faz a história pulsar. E nessa HQ ele pegou uma missão bem complicada: a de adaptar Grande Sertão - Veredas, um clássico da literatura brasileira escrita pelo gênio Guimarães Rosa.
Vou tentar a infeliz missão de fazer uma sinopse dessa obra. Grande Sertão Veredas é uma história contada pelo seu protagonista Riobaldo que nos conta sua trajetória pelo sertão mineiro em uma imensa jornada que nos fará conhecer o coração dos homens do interior, ao mesmo tempo em que ele precisa enfrentar as tropas governistas que buscam a opressão do povo sertanejo. Durante suas andanças ele conhece Diadorim (ou Reinaldo), um homem que através de sua bravura e decisão o encanta a ponto de ele dedicar sua vida a estar ao seu lado. Riobaldo e Diadorim fazem parte do bando de foras-da-lei sob a chefia de Joca Ramiro, um homem justo, porém embrutecido por todas as violências que ele já viu na vida. Grande Sertão é uma narrativa que mostra o interior do coração de Riobaldo, um homem balançado pela vontade de fazer a diferença, mas também a de estar ao lado do enigmático Diadorim, alguém por quem ele descobre sentimentos conflitantes.
Fica bastante complicado eu falar de como Guazzelli adaptou a obra porque a maneira como o roteiro chega nas páginas da HQ é muito semelhante ao que Guimarães Rosa empregou em sua obra. Óbvio que é basicamente impossível chegar próximo ao nível de escrita do grande autor, mas o que parece claro é que Guazzelli entendeu o que Rosa tentou transmitir em sua obra. E ele traduz isso de uma forma gentil e honesta, nos mostrando um sertão vivo, que é quase como o verdadeiro protagonista da obra, mais do que os personagens presentes na narrativa. Um sertão que pode ser belo e cruel ao mesmo tempo, e que bate forte no coração como as agruras da vida. As dificuldades são muitas vividas pelos sertanejos, tudo em troca de um pouco de liberdade em suas existências. Outro ponto legal do roteiro do Guazzelli é em como ele deixou a arte do Rodrigo Rosa trabalhar nos momentos mais idílicos.
A obra de Guimarães Rosa é muito mais complexa do que os temas que vou trabalhar aqui, mas queria chamar a atenção em três pontos. O primeiro deles é a existência de uma linguagem que se assemelha a um realismo mágico em alguns momentos. O sertão é um ambiente que ultrapassa a compreensão humana. Tem um momento da narrativa em que eles precisam atravessar uma faixa de terra que seria um atalho para o seu objetivo. E o sertão os castiga terrivelmente, mostrando suas garras para que o homem conheça o seu lugar. Já em outro momento temos uma informação de que o antagonista teria feito alguma espécie de pacto com o demônio para que ele pudesse suplantar todos os esforços feitos contra ele. E todos os reveses sofridos pelo bando de Riobaldo são fruto desse pacto. Ou que Diadorim tem o corpo fechado e por essa razão a narrativa nos mostra alguém que não se enquadra em definições mundanas. Ou seja, o mágico se une a uma vida cheia de dificuldades e fornece explicações possíveis para alguns dilemas.
Outro lado interessante é que o roteiro ressalta bastante as dificuldades que Riobaldo tem para entender a si mesmo e a seus sentimentos por Diadorim. Na época em que o livro foi escrito, Rosa recebeu críticas e elogios por nos apresentar a imagem de um sertanejo dono de um espírito humano e frágil. Retirando do palco aquele estereótipo do homem másculo e viril, e nos colocando frente a frente com uma personalidade que precisa entender o que ele faz no meio de pessoas que matam outros. Desde o começo da história, Riobaldo critica as ações violentas do bando ao qual faz parte. Se ele buscava outras soluções no começo, o convívio com seus companheiros e as situações que eles vivem cria uma casca nele em que há a compreensão de uma necessidade de encontrar a justiça. Diante de tanta opressão e violência, somente esse caminho pode nos levar a alguma solução futura. Claro que em vários momentos, se coloca contra decisões mais extremas do bando como quando eles capturam o líder das tropas governistas na região.
Sem falar na situação com Diadorim que percebemos se tornar uma paixão verdadeira da parte de Riobaldo. Seus sentimentos por seu companheiro são claros, o que lhe causa uma confusão ao pensar que ele está apaixonado por um homem. Na sua concepção de mundo, isso é errado e ele tenta se convencer de que é o amor de um irmão. Mas, os indícios apresentados por toda a narrativa falam o contrário e ele não os aceita. Sua saída, muitas vezes, é encontrar uma paixão efêmera seja com amantes vazias nas cidades ou se convencendo de que vai se casar com Otacília. O que o deixa mais confuso ainda é a percepção de que Diadorim parece também sentir o mesmo, dada as expressões de ciúmes que ele visualiza eventualmente. Então Riobaldo fica nesse dilema e chega a pensar até em pegar Diadorim e abandonar o bando em busca de uma vida longe de tudo. Mas, ele acaba rechaçado pela promessa de Diadorim que busca sempre um objetivo que parece não ter fim.
Essa é uma belíssima adaptação do romance de Guimarães Rosa. Acho que Guazzelli foi muito feliz ao conseguir captar a essência da narrativa tão mágica e desoladora de Grande Sertão - Veredas. Ele conseguiu transmitir para os leitores um texto difícil de ser adaptado dada a maestria de Guimarães Rosa de empregar a língua portuguesa de maneiras criativas e inesperadas. O livro em si possui uma linguagem própria, dificílima de ser traduzida e o roteirista conseguiu ser muito feliz. Para aqueles que sentiram dificuldade com o texto literário, recomendo esta HQ como uma porta de entrada para um retorno futuro ao mundo mágico criado pelo grande autor. Espero ter feito um bom trabalho em apresentar essa HQ, porque tentar reduzir a narrativa magnífica deste autor em uma resenha de poucos parágrafos chega a ser uma heresia à grandiosidade do gênio de Guimarães Rosa.
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