Oz 02/03/2019
Já há tempos que considero a literatura portuguesa uma das melhores – se não a melhor – do mundo. É impressionante como os escritores de Portugal são capazes de não apenas trabalhar a sua – e, há alguns séculos, a nossa – língua como também criar histórias criativas e que nos proporcionam grandes reflexões. Quem iniciou essa paixão que tenho pela literatura desse país foi José Saramago. Não seria exagero dizer que foi ele o responsável por me fazer gostar tanto dos livros quanto gosto hoje. Embora já fosse entusiasta da leitura de romances, Saramago simplesmente explodiu minha cabeça - no bom sentido, é claro. Apesar disso, essa é a primeira resenha que escrevo desse grande gênio, pois há tempos que não lia ou relia nada dele. Por sinal, essa é uma releitura que fiz de “A Caverna”, já que não lembrava muita coisa da história e decidi, por esses dias, que era hora de explorar melhor os livros que já tenho em minha estante.
“A Caverna” conta a história de Cipriano Algor, um oleiro que vive em sua casa na zona rural de algum lugar de Portugal, dividindo o teto com sua filha Marta e o marido dela, que trabalha como segurança no Centro – uma espécie de condomínio residencial, shopping, zoológico, mercado, parque de diversões e tudo mais que é possível imaginar, tudo reunido em um lugar gigantesco no centro (não diga!) de alguma cidade não nomeada. Cipriano fornece suas peças de barro para o mesmo Centro, que compra seus cântaros, potes e derivados já há tempos. No entanto, a demanda por tais produtos tradicionais vem caindo bruscamente, de forma que o Centro decide parar de comprar as peças produzidas por nosso protagonista. Ao mesmo tempo em que deve enfrentar esse problema que ameaça a continuidade do seu trabalho e do seu sustento, Cipriano se encontra na iminência de viver sozinho, caso seu genro seja promovido para guarda residente, tendo que mudar com Marta para o Centro. Nesse ínterim, Saramago introduz mais um personagem na vida dessa família: um cachorro que aparece do nada na casa deles em uma noite chuvosa. O nome que recebe de Cipriano e sua filha não poderia ser mais descritivo: Achado.
Essa é a trama que se apresenta em nossa frente. A um primeiro olhar, e talvez a um segundo ou terceiro, não se trata de nada muito grandioso ou criativo. Contudo, é através desse microuniverso familiar que Saramago consegue discutir inúmeras questões que tocam no âmago de qualquer ser humano, como as raízes, as tradições que passam de geração em geração, o desenvolvimento econômico e de novas tecnologias, a desigualdade de classes e, principalmente, a capacidade que o ser humano tem de buscar a felicidade, ainda que a um custo de severas mudanças.
Como já é de conhecimento quase geral – mesmo para quem nunca leu Saramago -, sua forma de escrita é peculiar, pois não separa os diálogos com travessões ou aspas, nem utiliza pontos de interrogação ou exclamação. Ele decide separar as falas dos personagens apenas inserindo uma vírgula e iniciar a fala do outro personagem com letra maiúscula, tudo no mesmo parágrafo. Isso pode parecer estranho para quem não já está acostumado, mas eu garanto que isso não é apenas uma frescura estética do autor. Muito pelo contrário, esse formato dá uma fluidez única aos seus diálogos, como se fosse um rápido jogo de pingue-pongue em que os olhos do leitor passam de uma fala a outra sem pausas ou interrupções. Dada a capacidade que Saramago tem de criar diálogos incríveis, com personagens que parecem sempre ter uma carta na manga para dar respostas ligeiras e geniais de forma orgânica, esse método de escrita é excepcional. Várias pessoas comentam ou reclamam que é difícil ler Saramago por conta desse formato de escrita do autor, mas eu não poderia discordar mais disso. E vou além: estou certo de que isso é até melhor para o que Saramago pretende - e de fato consegue - fazer. A narrativa corre solta como um rio.
Forma e conteúdo trabalham juntos em “A Caverna” para nos fornecer uma brilhante história, certamente uma das que não recebem a atenção que deveria dentre as magníficas obras de Saramago. Ao final da leitura, fiquei estupefato em relembrar o motivo de idolatrar tanto esse escritor, de onde parece jorrar uma fonte infinita de criatividade. Não bastasse isso, ele é o típico autor que traz reflexões e passagens simplesmente memoráveis, daquelas que você faz uma marcação para que você mesmo ou outro alguém possa, no futuro, abrir na página marcada e ter o prazer de ler algo maravilhoso. Seria criminoso encerrar essa resenha sem transcrever aqui alguns desses belíssimos trechos. Que tal essa abertura de um capítulo:
“Autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo próprio princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida”.
E que tal essa divagação sobre o que é a leitura, que surge de um diálogo entre Cipriano e sua filha:
“Vivi, olhei, li, senti, Que faz aí o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar”.
Como meu impulso compulsivo não me deixa parar de destacar algumas passagens, então aí vai uma última, talvez a minha favorita, um verdadeiro mar de sensibilidade:
“Marta sai do quarto e vai pensando Dorme, eis uma palavra que aparentemente não fez mais do que expressar uma verificação de facto, e contudo, em cinco letras, em duas sílabas, foi capaz de traduzir todo o amor que num certo momento pôde caber num coração humano. Convém dizer, para ilustração dos ingênuos, que, em assuntos de sentimento, quanto maior for a parte de grandiloquência, menor será a parte de verdade”.
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