David Ariru 25/09/2016
O ponto central da obra sobre uma ótica
Primeiramente, esse é o tipo de obra candidata a fazer parte do seleto grupo dos “novos clássicos”. Nelson utiliza o contexto histórico pelo qual passava o Brasil na época. Isso evidencia-se de várias formas, seja pela linguagem das personagens e suas gírias, seus costumes, suas paixões e vícios etc. Porém, apesar de possuir esse fundo histórico baseado na atualidade, não se trata de uma obra rasa como as que são produzidas em massa hoje em dia, seja nos livros, filmes, novelas e outros meios. E essa “profundidade” que destaca esta obra de muitas outras está, principalmente, em seu enredo.
O autor mostra-nos personagens bastantes envolvidos com suas paixões e desejos, porém, igualmente infelizes. Tunico, por exemplo, é um homem desempregado, embora costume ir ao bar beber e jogar com os amigos, e parece importar-se mais com seu time de futebol que com a sua esposa, Zulmira. Ela também leva uma vida medíocre sem entusiasmo nenhum, senão em dois pontos: o relacionamento que teve fora do casamento e o fascínio pelo próprio enterro. No primeiro ponto destaca-se o modo como ele ocorreu; Zulmira fora beijada à força um dia repentinamente sem ao menos saber por quem e, não só correspondeu ao beijo e foi além dele, como também começou a se encontrar regularmente com o homem até então desconhecido. Isso demonstra tanto a frouxidão do seu casamento com também a sua, pois não fosse esse acontecimento inesperado, provavelmente não teria traído o marido, já que prezava muito em manter uma boa aparência e ser vista e admirada como uma mulher decente pelos demais. Já a respeito do seu fascínio pelo próprio enterro, não se pode deixar de falar sobre Glorinha; a ausente, mas contundente prima de Zulmira.
A trama começa com Zulmira temendo alguma atitude de Glorinha contra ela. Depois é revelado que Glorinha sabia da traição de sua prima. E é por isso que Zulmira começa a tramar contra ela, decidindo, por fim, que teria um enterro tão pomposo que humilharia Glorinha e mostraria a mulher superior que Zulmira era diante dela. Uma desforra; é disso que se trata o enterro.
Mas desforra de quê? Que fez a prima a ela? Ora, este é o ponto central da obra. Glorinha conhece a infâmia da prima, aquilo que mancha sua reputação. Ressalta-se que, logo após Zulmira ser descoberta por acaso pela prima, ela rompe os laços com o amante, fica, então, evidente que a traição em si não era tão infame para Zulmira, podia conviver tranquila com isso, entretanto, ser vista como uma mulher devassa que trai o marido, isso ela não poderia suportar. É a preocupação com o que os outros vão pensar dela e dos seus atos o que mais atormenta Zulmira. No caso, Glorinha é a única pessoa com quem se preocupar, já que só ela sabe da traição. O que há de genial na ausência de Glorinha é deixar claro que o que torturava a Zulmira é exatamente a preocupação de como ela é vista pelos outros, que juízo fazem dela, “O inferno são os outros”, o inferno de Zulmira é o que deve pensar a prima a respeito dela.
Zulmira se incomoda com os modos e o jeito da prima, conjectura mil infâmias a seu respeito, tudo para que não fique por baixo e que seja ela a hedionda. Chega até mesmo a pedir para o marido ficar com ela e acaba descobrindo que, por sequela de uma doença, ela tem uma deformidade no corpo. Eis o “ponto fraco” da sua adversária finalmente descoberto, e é através do enterro, consequentemente também sua morte, que Zulmira vê um modo de se mostrar superior e vingar-se do que pensa que a prima pensa dela...
O enterro e morte de Zulmira serve como uma metáfora, um tanto curiosamente concreta, de como as pessoas não medem esforços e até mesmo chegam a acabar, destruir, desfazer-se da própria vida em nome do status, tendo como questões norteadoras da vida “O que os outros vão pensar disso? O que vão pensar de mim?”
O final de Tunico e sua mulher mostra quão vão é perder a vida nessa tentativa e como é frívola a preocupação excessiva como o que os outros julgam-nos. E vale ressaltar mais uma vez; Glorinha não aparece uma única vez na história, quer para mostrar que realmente pensa barbaridades de Zulmira, quer para desmentir essa possibilidade, o que importa é o como Zulmira acha que é vista pelos outros, especificamente a prima, e isso fica bem claro na obra.
Ariru