Roberta 08/05/2024
Algumas pessoas despertam das maneiras mais improváveis
Hell é um livro visceral.
Eu já tinha lido ele em 2014, não todo, somente algumas partes, porque iria assistir à peça de teatro com a Bárbara Paz e queria estar prevenida para o espetáculo. Mas sempre me culpava por não ter concluído o livro, e este ano, dez anos depois, decidi mudar isso.
E tão logo comecei a ler, já senti o primeiro impacto.
A obra inicia com um tapa na cara. Daqueles ardidos, que doem. Achei engraçado a forma como a autora pareceu fazer de tudo para me irritar, me tirar do sério, causar em mim uma reação negativa, e ela quase conseguiu! Suas implicâncias e preconceitos passam uma primeira impressão de menina mimada e fútil que é difícil de engolir. Mas, aí, você reflete um pouco... e pensa: será que EU não estou sendo a preconceituosa aqui? Julgando uma pessoa pelas primeiras palavras, que certamente foram atiradas com o propósito de me provocar?
No fim, o livro diz muito mais sobre quem lê do que sobre quem o escreveu.
Eu poderia ter ficado irritada, claro, ou ultrajada, enojada, e fiquei, em certa medida, mas não com Hell. Porque, lá no fundo, apesar de tudo, o que ela escreveu não é para o leitor, é para ela mesma. Ela quer provocar essa reação de repulsa porque é isso que ela sente por si mesma. É perceptível o quanto de descaso ela tem pela própria vida. Quanto mais luxo, menos emoção. Quanto mais facilidade, mais riscos. Quanto mais oportunidades, mais desperdícios. E assim ela vai seguindo pela vida, repleta do vazio da existência medíocre.
Tenho certeza de que se eu fosse alguém menos consciente das coisas, digamos que com menos inteligência emocional, eu teria caído no papo de “somos os herdeiros da fortuna do mundo”, “somos privilegiados, mas pagamos nossos impostos então nos deixem em paz”, como sei que muitos cairiam. Afinal, é muito fácil sucumbir à inveja ou ao vitimismo ao pensar que “eles” são mesmo privilegiados e os culpados de tudo.
Claro, se você pensar em privilégio unicamente como acesso ao luxo e ao dinheiro, você pode ter razão, porém eu não vejo dessa forma. E depois de ler esse livro, tive ainda mais certeza. As pessoas são cruéis com quem tem dinheiro, com quem faz sucesso. Esse seleto grupo, então, fica restrito aos próprios círculos, em parte porque querem assim, mas em grande parte porque onde mais se entrosariam? Seus sentimentos são constantemente invalidados, descartados: “o que essa menina rica sabe de sofrimento?”, não é o que dizemos? Pois é, mas eles são seres humanos como qualquer um de nós, e sentem muitas coisas. A maioria deles não teve uma infância como você ou eu. Cercados pelo luxo, dinheiro fácil, não aprenderam o valor dele, e pensam que com ele se pode comprar qualquer coisa, qualquer um. Com pais ausentes, narcisistas, psicóticos, conhecem de perto a dor do abandono e do descaso. Com amigos que não conhecem muito do mundo, da mesma forma que eles também não conhecem nada além do raio de sua bolha, ficam restritos àquele conhecimento limitado e às alegrias vazias do consumismo.
Não é dizer que eles não se alimentem do sistema, porque isso seria mentira. Mas, hoje em dia, quem não se alimenta do sistema? Mesmo essa palavra, “sistema”, quando a pronunciamos parece que estamos falando de uma coisa muito distante, mas sistema somos nós, é a nossa sociedade. O conjunto de todas as pessoas que vivem e contribuem para que ela seja como é, e não me venha dizer que cada um não contribui de alguma maneira porque essa é uma das maiores mentiras já contadas. Sim, alguns têm mais poder de influência que outros, e sim, alguns têm mais facilidades em razão do berço, do status, mas os privilégios acabam por aí. O que cada um faz de sua vida é inteiramente escolha da própria pessoa, e veja o exemplo da própria Hell.
Fiquei sabendo que, após a publicação do livro, que é quase uma autobiografia da autora, ela foi praticamente enxotada de seu círculo e forçada a viver à margem. Não que eu acredite que ela tenha se importado com isso, mas saber desse fato, saber que ela se baseou em pessoas reais, em sua própria vida, e as coisas que escreveu em sua obra...
Isso me fez refletir... muito.
Eles escolheram ser ignorantes, entende? Quanto ao que se passa no mundo, escolheram viver dentro de suas bolhas, mas ali ninguém é feliz. Não mesmo. Porque, ao optar pela vida fútil, aparentemente mais fácil, o vazio passou a ser uma presença constante, e eles precisam ocupar essa vida de alguma forma, para suprir, ou mesmo suprimir, o vazio, buscando, sempre buscando alguma coisa... consumindo, fofocando, ingerindo drogas, álcool, usando o sexo pesado como escape... como pode ver, só coisas saudáveis.
E, aí, me diga, como isso é um privilégio? Pessoas que se autossabotam dessa maneira? Pessoas que não valorizam a própria vida e, em consequência, cagam para a vida dos outros? Pessoas cercadas de mimo, arrogantes, fúteis, que não se importam com nada de muito substancial na maior parte do tempo, por escolha própria, quando poderiam fazer alguma coisa para mudar isso? Mas aí, meus amigos, o mito da caverna de Platão sempre me vem à mente e eu me questiono: não seriam mais um bando de ignorantes acorrentados de frente às sombras dançantes do fundo da caverna?
Para mim, Lolita Pille foi aquela pessoa que se desprendeu das correntes, saiu e enxergou o mundo, mesmo à sua maneira distorcida, e voltou para tentar resgatar os outros, mas foi de pronto calada por todos. Ela sabia o que era o vazio e queria sair disso, mas era a única, aparentemente. Porque a pressão de fazer diferente, de querer mudar, é demais. É por isso que muita gente apenas abaixa a cabeça e se conforma com o “sistema”.
Como consequência, o livro deixa inúmeras reflexões sobre nós, seres humanos, e nossas escolhas. Eu me pergunto, assim, por que vivemos correndo atrás de quem tem dinheiro? Por que damos atenção somente a quem tem fama? Por que nossos olhos são atraídos somente pelo belo, pelo brilho, pelo luxo, pelo inalcançável? Não seria a nossa própria escassez e sentimento de vazio buscando preencher os buracos com futilidades? E aí viramos para o lado a fim de criticar quem faz o mesmo que nós...