Lucas 05/08/2020
Tarás Bulba: Uma síntese perfeita do que é a literatura russa e do que ela representa
Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852), sem exageros, é o patriarca da literatura ficcional russa, que explodiu no Império Russo no século XIX e que legou à eternidade dezenas de obras de inúmeros autores diferentes. Junto ao poeta Aleksandr Púchkin (1799-1837), eles foram os pilares daquilo que convencionou-se chamar de Era de Ouro da literatura daquele país, até então agrário e quase feudal.
Importante demonstrar este preâmbulo porque por mais que se estude e sejam famosas as obras russas daquele período no Brasil (especialmente as de Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói, Ivan Turguêniev e tantos outros), ainda se tem na mente daquele leitor não estudioso da literatura russa a noção de que estes "monstros" (no sentido aumentativo) citados são os grandes baluartes desta literatura. Não deixa de ser verdade, lógico, mas estes autores que viveram seus auges a partir da segunda metade do século XIX construíram uma eternidade própria que deriva de Gógol e Púchkin. Prova disso é a obra Tarás Bulba, lançada por Gógol em 1835, seu segundo trabalho e que o fortaleceu no cenário literário russo da época.
Tarás Bulba não é personagem protagonista do livro; é um pouco difícil para o leitor definir quem o seja, mas é por meio das decisões de Bulba que todo o dinamismo da narrativa vai se construindo. Se for para delimitar um protagonista para os doze capítulos da história, fica claro que ele não é um personagem específico, mas sim o povo cossaco.
Falar dos cossacos é falar do povo russo, pois uma breve pesquisa sobre a origem desse grupo étnico traz uma forte semelhança daquilo que se entende por "russo" como indivíduo junto ao imaginário do Ocidente. Os cossacos correspondem a um povo originário da região sul da Rússia, em especial à beira do Mar Negro e na atual Ucrânia. Teimosos, normalmente de bigodes, machistas (para os padrões atuais) e, essencialmente, ótimos guerreiros: são termos que sintetizam cruamente o que são os cossacos. Patriotas, beberrões, soldados destemidos e ao mesmo tempo selvagens nos campos de batalha são adjetivos que complementam essa descrição e que não são críticas a este povo: são complexidades que tornaram a tarefa narrativa de Gógol ampla, por mais que ele tenha vivido neste meio (seu pai era um proprietário de terras cossaco e o escritor era natural do que hoje se conhece como a Ucrânia).
A região onde os cossacos viviam era marcada pela presença de inúmeros outros povos, que constantemente brigavam entre si dos séculos XVI a XVIII (a narrativa de Tarás Bulba não fala em datas, mas o narrador descreve a história como se ela estivesse ocorrendo "no século passado"): havia os tártaros (naturais do centro asiático), os turcos, os muçulmanos, os judeus e os poloneses, que conjuntamente são as etnias que mais aparecem no livro. As diferenças entre cossacos e esses povos (em especial os poloneses) levavam a constantes escaramuças regionalizadas, a maioria dela provocada por aspectos religiosos conflitantes e por disputas territoriais (é neste ensejo que a segunda metade de Tarás Bulba se desenrola. A atual Ucrânia era uma região controlada pela Polônia, de influência católica; já os cossacos eram cristãos ortodoxos). O homem cossaco comum, se sobrevivesse às guerras, normalmente adquiria uma fazenda no interior, arranjava uma esposa (que era totalmente submissa às vontades do marido), tinha filhos, os colocava num colégio distante e, quando formados, eram incluídos na arte da guerra.
É este o perfil de Tarás Bulba, inclusive. A obra começa narrando o retorno do seminário em Kiev dos seus dois filhos, Óstap e Andríi. Bulba, um homem de ação e apaixonado pela vida da caserna, logo que os filhos retornam à casa paterna, organiza uma expedição para a "Siétch" (fortificação militar dos cossacos) de Zaporójie, que ficava às margens do Rio Dniepr, importante rio do leste europeu que atravessa toda a atual Ucrânia. Toda essa "atividade" marca o primeiro capítulo: é apressado e dinâmico, sem ser vazio. Gógol, nestas primeiras páginas, já faz uma descrição bastante minuciosa do cossaco como povo, seu apego ao militarismo, às farras e assim por diante.
Uma marca que fica desde estes primeiros momentos é a habilidade de Gógol em "pintar" com palavras um pano de fundo narrativo coloridamente belo. As descrições detalhadas que ele faz da estepe, famosa formação geográfica da Rússia, marcada por planícies e vegetações rasteiras, são um exemplo singular dessa capacidade narrativa. Se Ivan Turguêniev (1818-1883) ficou posteriormente marcado por ter uma grandiosa habilidade de escrever sobre a natureza em geral, muito deve ter aprendido com Gógol.
Esta mesma genialidade poética é transformada em realismo cru nos momentos apropriados. As descrições de batalhas oferecem dezenas de cenas fortes, com decapitações, espancamentos e por aí vai. Há também um relato frio e realista de um cerco a uma pequena cidade e o resultante desespero dos cidadãos que nela viviam. Aqui, torna-se inevitável não lembrar de Liev Tolstói (1828-1910) e a agonia que a narrativa do seu Guerra e Paz (1865-1869) causa quando relata o cerco e posterior invasão à Moscou pelas tropas napoleônicas em 1812. É bem perceptível a semelhança no sombrio tom narrativo que é empregado.
Ponto genial digno de nota (e que é muito bem assinalado por Nivaldo dos Santos, tradutor da obra, no posfácio da sempre excelente edição da Editora 34, que contextualiza muito bem outros pontos) é o ineditismo no cenário literário russo da época personificado por Gógol ao tratar personalidades comuns como verdadeiros heróis, dignos de romances. O autor foi o primeiro a escrever sobre o povo russo como fonte de heroísmo, colocando em destaque personagens aparentemente comuns como exemplos de coragem, superação e apego a um ideal. Completando a tríade de autores russos posteriores citados e a influência que eles obtiveram a partir da obra "gogoliana", esta é uma tese muito aprofundada por Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que em seus trabalhos sempre recorria ao povo mais humilde, ao tipo mais comum e até decrépito da sociedade que o circundava para protagonizar todas as suas narrativas.
Além de todas estas nuances alegóricas, que ajudam a definir a literatura russa (se é que esta é uma tarefa possível), Tarás Bulba ainda traz uma história cinematográfica sem ser apressada e que fala dos mais diversos temas: a religião, o patriotismo, a família e como o cossaco se inseria nesse contexto. Os valores amplos do cossaco são questionáveis na mesma medida da sua bravura: se sobra coragem para encarar um exército inimigo em campo aberto, sobram condutas polêmicas no trato familiar, por exemplo. Estas dissonâncias são mais relevantes do que o futuro leitor pode imaginar, já que elas conduzem a um desfecho imprevisível, na qual é impossível que quem está lendo-o passe incólume.
Religião, patriotismo, crenças, valores próprios... Tudo isso e muito mais se confundem na jornada épica e breve de Tarás Bulba. De caráter nacionalista e panfletário, é por meio dele que Nikolai Gógol solidificou sua posição vanguardista dentro da Rússia e na eternidade literária. Ao oferecer reflexões de temas universais sob o ponto de vista cossaco, Tarás Bulba acaba sendo a resposta, fria, mas totalmente exata, à hipotética pergunta: o que é a literatura russa? O livro, em seu todo, responde a este questionamento formidavelmente, provocando um fascínio ao leitor que ele dificilmente irá esquecer.