Breno Torres 22/08/2014Para acreditar em milagres.Ter As Aventuras de Pi em mãos foi um golpe de sorte. Não deveria ser meu; comprei prum amigo e, quando vi que tinha em mãos um livro de um filme que queria ver há muito tempo, decidi ficar com ele e dar um outro ao tal amigo – já que, bem, é uma regrinha básica para a maioria de nós, leitores, sempre ler o livro antes de ver o filme em que foi baseado (e eu sigo essa regra feito o chatérrimo bookaholic que sou). E, como dito: um golpe de sorte. E que sorte. Pois acabei tendo em mãos um dos melhores livros que li esse ano – e, quem disse que não?, da minha vida.
As Aventuras de Pi conta a história, baseada em fatos reais, de Piscine Molitor Patel – que, por razões inúmeras, rebatiza socialmente a si mesmo como Pi. Um menino inteligente e de mente aberta, vegetariano, que é ao mesmo tempo cristão, muçulmano e hindu (sim), descobre que precisa deixar a Índia com seus pais, irmão e animais do zoológico onde vive em direção ao Canadá para recomeçarem suas vidas. Na viagem de ida, porém, Pi vê-se num bote com uma hiena, uma zebra, uma orangotango e um tigre (Richard Parker – sim, esse é o nome do tigre, e o porquê dele ter esse nome você também vai descobrir), após o assustador naufrágio do navio Tsimtsum. E são sobre os meses – sim: no plural – que Pi Patel, um jovem sagaz, corajoso e perseverante sobrevive no meio do oceano que você irá saber. E entender. E, com ele, se aventurar.
No meio do livro, eu fiquei me perguntando se o título “As Aventuras de Pi” havia sido realmente uma boa escolha para a tradução do nome original, Life of Pi, no Brasil. O substantivo “aventuras” me passa uma imagem por demais... Romântica, quando se atribui a uma trajetória. É levar o leitor imediatamente a pensar em grandes aventuras mitológicas, sobre um forte, indestrutível e brilhante ser divino à la grega – e foi isso, confesso, que estupidamente me levei a acreditar. E, consequentemente, estupidamente fui jogado para fora do que eu acreditava pelo enredo. Pois foi também assim que foi As Aventuras de Pi, para mim: um soco na cara e no estômago. Assim como um beliscão na consciência, e em muitas verdades que eu achava serem sólidas dentro de mim.
A primeira parte do livro é brilhante. Trata-se basicamente de uma apresentação de Pi, da mentalidade de Pi e da realidade em que vive; é nesse momento em que o leitor irá conhecer o seu herói. Como dito, e provavelmente deve ter parecido confuso para quem não leu o livro, Pi Patel se trata de um menino um tanto diferente: ele se considera de várias religiões. E é esse o ponto que Yann Martel perfura com maior intensidade e maior foco, nesta primeira parte da obra, lindamente expressando o que quer expressar sem parecer um desesperado espiritualizado que quer converter pessoas – não, nem pense nisso. Sou pessoalmente apaixonado por qualquer coisa que traga discussões sobre religiões – desde entrevistas na TV a livros especializados no assunto –, e encontrei nesse livro uma mina simples, nada pedante e preciosa disso. Preciosa por não querer profetizar, ou dogmatizar, espiritualizar, mas por esclarecer: pelas palavras de um homem sábio, é descrita toda uma vibrante discussão sobre essa realidade pessoal de Pi, sua grande quantidade de crenças religiosas, o porquê dele ser assim, e o porquê de não ser errado ele ser assim; do porquê todo tipo de crença ter seu valor e sua beleza, apesar de suas grandes obscuridades, e, principalmente: como o seu eu cheio de fé e crenças foi uma grande arma para sua sobrevivência. As Aventuras de Pi é um livro lindamente universal, verdadeiro e corajoso nesse sentido.
É então quando o livro parece mudar de tom. A escrita leve, muitíssimo bem-humorada (o humor inteligente de Yann Martel me arrancou gargalhadas em sua primeira parte) e descompromissada tomba exatamente quando o navio de Pi Patel também tomba, para uma escrita mais dura e seca – e o leitor é levado com a história para o fundo do poço da nova realidade do herói de Martel. Magnífica, essa mudança de tom – do claro para o negrume, onde a tensão de Pi pode ser sentida na pele, quase que literalmente de tão real. É aí então que a história de fato começa. E o que Pi Martel passa em alto oceano, nos meses em que fica perdido... É cruel. Nuamente desenvolvida ao longo do enredo, as provações de Pi são lancinantes: seu estado emocional; seu estado físico; seu estado espiritual; seu estado existencial; seu estado psicológico – tudo, tudo, absolutamente tudo que poderia ser trabalhado em Pi para descrever a história de um garoto perdido em alto mar é trabalhado com perfeição – por isso me atrevo com toda a confiança do mundo a definir Piscine Molitor Patel como um dos mais completos protagonistas que já li.
A trajetória sofrida de Pi é desenvolvida num universo ironicamente “mínimo”: simplesmente um bote, uma engenhoca e imensidões verticais e horizontais (um céu infinito, um horizonte infinito, um oceano infinito). O passo a passo da sobrevivência nesse “mínimo” é acachapante: ver como Pi compreende sua realidade, encontra e constrói suas chances de vida e adapta-se inteiramente à necessidade é incrível, tudo em meio de uma escrita viciante, dinâmica, inteligente, baseada numa ótima pesquisa e inteira repleta de discussões relacionadas aos processos de identificação, entendimento, percepção, dentre outros, de Pi. É também tudo muito cru, seco, quando precisa ser. O que acontece realmente é dito como acontece, e isso me chocou algumas vezes – a ponto de me fazer virar o olho das páginas, tomar um fôlego e só em seguida continuar (claro que isso vai do nível de sensibilidade de cada um, mas acho que nenhum passaria ileso ao que acontece à zebra...). Mas mais interessante mesmo é a... Eu ia dizer “amizade”, mas é tanto mais como menos o que se desenrola entre Pi e seu fiel companheiro, Richard Parker, o tigre que tem nome de gente. O processo de entendimento, compreensão, habituação, rotina, sobrevivência de ambos é... Uau. Uau, de fato. E, por favor, um momento pro derretimento do resenhista: que coisa mais linda, incrível, fofa, fodástica é Richard Parker?! Esse tigre é LINDO, gente! Pelo amor de Deus!!! Fodástico e absurdamente metafórico – pode deixar o leitor doido, doidinho da silva, se ele se permitir pensar sobre todas as metáforas escondidas nas entrelinhas desse livro.
Ao final, enfim, é outro fôlego que a escrita toma nos poucos capítulos da terceira parte do livro – e qualquer informação que eu dê sobre esse fôlego eu corro o risco de dar spoiler, então prefiro deixar meu leitor por ele mesmo descobrir o que acontece (apesar de ser, bem, meio óbvio o principal do desfecho da história). O fim do livro é feito de uma forma que é bastante satisfatória – mas, bem, só. Fiquei meio em dúvida se gostei ou não. Se merecia mais poesia, algo mais inebriante...
Mas isso, um mero milímetro perto de quilômetros de maravilhas, não faria o livro perder nem um pouco seu brilho. As Aventuras de Pi é um livro precioso, um achado; uma prosa de ouro, que merece ser eternizada como um livro inspirador e poderoso. Aliás, por fim, eu finalmente concordei com o título dado no Brasil: As Aventuras de Pi. Porque o caráter de divino nessa história existe. Que não pode ser definida de outra forma além de: um milagre.
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