Ana Paula 31/10/2021
De volta a Nyumba-Kaya
Fui apresentada a literatura de Mia Couto em 2017, com o livro Terra Sonâmbula, leitura obrigatória do vestibular. E qual não foi minha surpresa por ele se tornar um dos meus livros favoritos da vida! Desde então, tenho como meta pessoal ler tudo que o autor já publicou. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, é a terceira obra que leio do autor e posso dizer seguramente que ele é um dos meus autores favoritos da vida.
Neste livro temos tudo que eu mais amo no Mia Couto: a narrativa sensível e poética, metafórica, fluida, profunda e rica em oralidade; o fantástico se misturando ao real, criando imagens belíssimas e fortes; elementos culturais próprios de Moçambique como meio para se atingir temas universais, como a morte, a vida, a natureza, o amor, o destino, entre outros; o contexto histórico relativo a colonização por Portugal e a luta pela libertação, sempre com críticas melancólicas. Em suma, este livro é um prato cheio que sacia o leitor com alimentos para sua alma.
O enredo deste livro trata de uma jornada, a jornada de Mariano neto para o enterro do Mariano avô. Mas, não é nada simples. Mariano avô não está exatamente morto, nem vivo, aí encontra-se o primeiro elemento fantástico da obra. É uma jornada física, o neto desloca-se da cidade e regressa para a ilha onde nasceu e passou a infância, reencontra familiares, desenterra segredos do passado, para poder enterrar o avô dignamente. É também uma jornada espiritual, o arco do narrador Mariano, o neto, implica num desbravar interior, porém não um interior estritamente individual, mas um interior coletivo. O título do livro, belíssimo por sinal, já nos dá a pista do teor universal da história, do caráter coletivo. Não é uma jornada de um homem, é a da humanidade.
Nyumba-Kaya é o nome que se dá a grande casa da família Malilanes, Nyumba sendo o termo para casa na língua do norte e Kaya na do sul. Esta casa, este lar, é para mim a grande personagem deste livro, assim como a ilha de Luar-do-Chão, uma como metonímia da outra, parte e todo. Os diversos personagens do livro entram na história de forma direta ou indireta por esta casa, e suas histórias vão sendo desveladas aos poucos, muito guiadas por cartas misteriosas. Cartas estas que Marianinho recebe, mas só ele consegue ler, a princípio não sabe bem quem é o seu interlocutor misterioso, mas entende a importância do conteúdo delas e as percebe como pistas em sua jornada.
"O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. - Avô Mariano"
Cada capítulo, além de título simbólico e resumitivo, possui uma citação, em geral de personagens da própria história, como o posto acima. Particularmente me encantei com este recurso narrativo, que possibilitou um espaço de fala para os personagens, já que a narrativa é toda em primeira pessoa, pelo Mariano.
Leitura mais que recomendada, autor mais que exaltado, por fim, deixo aqui uma das minhas citações favoritas de início de capítulo:
"Eis o que eu aprendi nesses vales onde se afundam os poentes: afinal tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências. - Fala de João Celestioso ao regressar do outro lado da montanha"