stsluciano 16/04/2013
Um retrato vívido da realidade indiana
Muito se fala sobre as desigualdades sociais, e se pergunta sobre como é possível que exista um abismo tão grande entre a qualidade de vida da minoria mais rica e a da maioria mais pobre. Meu professor de Economia, na faculdade, diria que ele é inerente ao capitalismo. Em “Em Busca de Um Final Feliz”, primeiro livro da experiente jornalista Katherine Boo, conhecemos a favela de Annawadi, na Índia, e somos apresentados a uma gama incrível de personagens vivendo do lado mais pobre deste abismo.
A Annawadi palco do livro é uma pequena favela onde as condições de vida podem ser consideradas menos que sub humanas – esgoto a céu aberto; proliferação de ratos; bica comunitária e deficiente para compartilhamento de água; vícios; pessoas trabalhando muito para ganhar o equivalente a menos de um dólar por dia, e etc. – que fica ao lado de um moderno aeroporto de Mumbai e hotéis cinco estrelas que contrastam com o ambiente onde vivem e marginalizam ainda mais os moradores que acompanhamos durante a narrativa da autora: como Sunil, Manju, Meena, e a família Husein: Zehrunisa, Karam e seus filhos, em especial Abdul.
É na favela que os personagens se encontram e desenvolvem suas relações que são objeto de observação da autora: o modo como levam à vida, pura e simplesmente, teimando em subsistir em condições tão precárias enquanto estão tão próximos do que há de mais moderno e luxuoso no mundo capitalista.
A primeira coisa que percebemos é como, incrivelmente, e mesmo colocados na mesma posição de excluídos do sistema social, os moradores de Annawadi são orgulhosos, briguentos e preconceituosos. A família Husain se sente discriminada por ser mulçumana e viver em meio a uma população majoritariamente hindu, ao mesmo tempo em que os outros moradores os invejam – muitas vezes abertamente – por estarem, Zehrunisa e sua família, prosperando com seu negócio de reciclagem de lixo.
E as situações vão se seguindo e criando uma certa tensão que sempre fica no ar chegando ao ponto de os garotos comentarem que a melhor maneira de se viver na favela é não se fazer ser notado. Prosperando – e aqui leia-se “ganhando o suficiente para se alimentar bem e se conceder pequenos luxos, como uma cama de ferro, uma colcha ou uma parede de alvenaria que os livre de mais mordidas de rato” – os Husain atraem para si a ira de Fátima, a Perna só, uma mulher ressentida e explosiva, que mesmo tendo apenas uma perna não perde uma oportunidade de arrumar confusão.
Enciumada com o bom momento que vive os Husain, ela se auto imola e coloca no chefe da família, Karam, e em dois de seus filhos, Kerkasham e, principalmente, Abdul, a culpa pelo ocorrido, naquele que é o maior gancho de todo o livro.
Nos apresentando um sistema apodrecido e completamente tomado pela corrupção, Katherine Boo acompanha o desenrolar da acusação e julgamento da família Husain, e temos uma noção do como é desesperadora a situação do país e de seus serviços públicos: os médicos do hospital público cobram pela consulta; os medicamentos destes hospitais são desviados, assim como os recursos para programas educacionais, de saneamento básico e incentivos econômicos; os relatórios policiais podem te favorecer ou incriminar, conforme sua disposição para contribuir com o policial encarregado, e etc. Difere do Brasil? Não.
Um fato que merece a atenção é a questão da sujeição à fé. Em “Cruzando o Caminho do Sol”, de Corban Addison – e também publicado por aqui pela Editora Novo Conceito – o autor dizia que as irmãs raptadas e vendidas como escravas, Sita e Ahalya, tinham uma profunda resignação quanto ao seu destino, baseando-se em preceitos religiosos que diziam – à grosso modo – que tudo o que estava acontecendo com elas era o desejado pelos deuses – ou “buscado” por elas através do karma –, então pouco havia o que se fazer.
A mim me soa como instrumento de alienação, mas funciona. Porém, aqui, no “Em Busca de Um Final Feliz”, já se nota uma mentalidade mais desenvolvida que refuta esta afirmação. Cansados da situação na qual vivem – e, no caso de Abdul, um jovem reservado mas que se mostra muito inteligente e perspicaz para observar o mundo à sua volta – com uma quase certeza de que o que fazem para mudar isto é muito pouco e apenas ilusório, afinal, estão somente subsistindo, muitos deles já entendem que sua situação pouco tem a ver com desígnios das divindades.
Mas isto não trás nenhum conforto, ao contrário. Estando em uma situação desesperadora, a ilusão de que aquilo que está acontecendo foge ao seu controle e nada pode ser feito, sendo um desígnio de um ser superior, é um sentimento bem mais acalentador que a plena consciência de que pouco se pode fazer para mudar o fato em um mundo corrompido por forças humanas. Talvez seja melhor saber a verdade, mas isto trás uma sensação de desespero da qual a ignorância trazida pela religião os protegeria.
A narrativa do livro é rápida embora basicamente descritiva – de ambientes, situações e sentimentos. Apesar de narrar passagens da vida de diversos moradores, é na família Husain e seu julgamento que recai boa parte da ação do livro, de modo que, nos momentos em que a autora os deixou – e a sua situação – em suspenso, a leitura não fluiu tão bem, mas talvez por eu ter me afeiçoado a eles: são amorosos, preocupados, interessados em progredir, em muito contrastando com os demais moradores de Annawadi.
Confesso que, lendo o livro, fiquei confuso por ele ser classificado como não-ficção. Em minhas experiências anteriores, a diferenciação entre aquilo que era ficção e o que não o era sempre se mostravam claras, o que não aconteceu aqui. Narrando em terceira pessoa, a autora se faz sempre presente, mas não se coloca como uma observadora, do tipo “vi um garoto estudando”. Ao contrário, ela diz “Mirchi estudava para suas provas finais”, como se contasse uma história.
Na “Nota da Autora”, ao final do livro, finalmente compreendi: todos os fatos, pessoas e locais narrados no livro são reais e frutos de anos de entrevistas e convivência levados à cabo pela autora, o que potencializou o efeito que a leitura teve em mim: então toda aquela miséria, o desespero das pessoas, as tragédias de cada dia, tudo foi real. Não que eu não quisesse enxergar, todos sabemos como o mundo pode ser, mas, nos deparando com alguém falando tão diretamente sobre o assunto, não há como deixar de ficar impressionado.
É um livro que dá um nó na garganta. Com seus personagens vívidos, pintados em cores realistas que só a não-ficção se permite, Boo construiu um grande livro. Dizem que, para solucionar um problema, primeiro é necessário saber que ele existe. Me pergunto como, se já estamos entupidos de ciência, ainda não começamos a nos mexer…
Resenha originalmente publicada aqui: http://www.pontolivro.com/2013/04/em-busca-de-um-final-feliz-resenha-119.html