PorEssasPáginas 19/08/2013
Resenha Fale! - Por Essas Páginas
Conheci Laurie Halse Anderson através do seu outro livro publicado no Brasil, Garotas de Vidro, que considerei brilhante. Por isso, quando a Editora Valentina anunciou que publicaria Fale!, fiquei enlouquecida por ele, ainda mais que a Vânia já tinha comentado que era um livro muito bom e muito forte. Sem vergonha que sou já fui logo pedindo pra Lany – que é a responsável aqui no blog pela parceria com a Valentina - que pedisse o livro pra mim (hohoho). E então o livro chegou. E eu li em dois dias (e só porque tinha que trabalhar, senão era um dia só). Quer saber por que Fale! é tão bom? Bem, vou te contar.
Primeiro tenho que dizer que essa capa é muito linda, mas a foto não transmite tudo o que ela é. O material é aveludado, o que faz com que o simples ato de segurar o livro seja uma delícia. O papel das páginas é amarelado e a fonte é no tamanho certo, deixando a leitura muito confortável. Além disso, todas as páginas contam com uma árvore encantadora no número das páginas e as transições de fases do livro também tem a ilustração de uma árvore maior. Simples e elegante. Resumindo: a edição está super caprichada.
Mas falando agora do que mais importa: a história. Quando conhecemos Melinda, ela está entrando no ensino médio. Ela passou por um trauma, mas não sabemos o quê, apenas que aconteceu algo numa festa e ela ligou para a polícia; depois disso, ninguém mais fala com ela. E, o mais importante, ela também não fala com ninguém. Não que ela seja muda, mas ela fala somente o estritamente necessário. O contraste enorme está na sua narração, na qual ela fala bastante. Ou seja: aquela máxima de quem pouco fala, muito pensa. E Melinda pensa demais.
"Gosto da sensação do sal das minhas lágrimas ardendo nos meus lábios. Lavo o rosto na pia até não restar mais nada dele, nem olhos, nem nariz, nem boca. Um nada todo liso." Página 61.
Por causa do que sofreu, Melinda se retraiu socialmente e escondeu-se dentro de si mesma. E prefere sempre ficar calada. É aí que é impossível não se identificar, mesmo se a gente não sofreu algo tão horrível quanto ela. Quem nunca ficou calado, quando por dentro estava gritando? E isso acontece muito, principalmente, quando se é adolescente. Eu não sei quantos de vocês que estão lendo essa resenha são adolescentes, mas deixo aqui meus votos de boa sorte e força, gente, porque essa fase realmente não é fácil. Nesse ponto, eu me identifiquei e muito com Melinda: eu era retraída e tinha pavor de falar o que não devia, por isso grande parte do tempo ficava calada. É claro que calar nem sempre é um problema: muitas vezes é melhor ficar quieto do que falar bobagem, mas em grande parte do tempo também é bom abrir o bico e dizer o que pensa. Caso contrário, ninguém vai saber sua opinião e você não vai conseguir defender seu ponto de vista, o que foi brilhantemente citado pelo personagem de David no livro.
No meu caso, só aprendi a falar quando a adolescência passou. Pra mim, esse período foi tenebroso e não tenho muitas boas lembranças, especialmente na escola. Talvez, se eu tivesse falado o que pensava, para muita gente, as coisas teriam sido mais fáceis. Talvez eu não sofresse tanto bullying. Talvez até eu tivesse mais amigos, um namorado na época e, principalmente, o respeito das pessoas. É isso que a voz, quando bem utilizada, faz: ela garante o respeito dos outros. Agora eu tenho isso, mas hoje eu sou adulta, já passei por muita coisa e sei que, se uma pessoa fala mal de você, quem tem um problema é ela. Mas quando você é adolescente não é bem assim. Você quer ser aceito e dificilmente, nessa época, você é seguro de si a ponto de pouco se importar com os outros.
"Sempre que tento conversar com os meus pais ou um professor, balbucio ou congelo. O que tem de errado comigo? É como se eu tivesse algum tipo de laringite espasmódica." Página 67.
"É mais fácil limpar os dentes com fio dental de arame farpado do que admitir que você gosta de alguém no ensino médio." Página 129.
Impossível não se identificar.
E então tem também o humor de Melinda que transforma um livro tão denso em algo fácil de ler. Um livro que a gente devora em pouquíssimo tempo porque flui com uma naturalidade espantosa.
"O peru flutua na pia, um iceberg de cinco quilos. Um peruberg. Tenho a sensação de estar no Titanic." Página 75.
"Tem alguma coisa no Natal que pede a presença de uma criancinha. Elas é que tornam essa celebração divertida. Fico me perguntando se não poderíamos alugar uma durante esse período." Página 88.
Melinda é gritantemente depressiva, mas não do tipo que chora e se lamenta, e sim do tipo irônico, dando a todo o livro um tom ácido e sagaz, muitas vezes até mesmo engraçado e, apesar do tema e da história tão pesados. Você se pega rindo das observações dela sobre o mundo, sobre as pessoas, a sociedade, a escola. Mas mesmo quando ela ataca com seu humor amargo e ferino, Melinda ainda assim é muito verdadeira. Achei especialmente interessante as críticas que ela – e, acredito, a autora, pois várias vezes os personagens falam pelos autores – faz quanto ao sistema educacional. Lendo esse livro percebi que, apesar da adolescência ser uma fase complicada em qualquer lugar, nos EUA ela é especialmente difícil, até mesmo cruel. Ou você se encaixa, ou é excluído. Na escola os alunos são analisados por tudo, desde o jeito como comem até como se vestem. Tá certo que isso é feito aqui também e em qualquer lugar, mas nas avaliações de Melinda a cada final de fase do livro há notas para isso! Fiquei pasma. Até duvidei. Pesquisei sobre o assunto, mas não achei nada que corroborasse a informação. Alguém aí tem uma luz para o assunto?
Além disso, houve uma passagem memorável, na qual foi intensamente criticada a intolerância aos imigrantes por parte de alguns americanos, sendo estes representados pelo detestável “Mister Pescoço” – aliás, os apelidos que a Melinda dá às pessoas são intensos e hilários, em muitos casos. Ironicamente através de Melinda, que não fala, Laurie solta sua voz e faz uma crítica à sociedade do seu país e também a sociedade como um todo, afinal, as pessoas não são assim tão diferentes, não importa o lugar. Infelizmente há amostras de gente hipócrita e cruel em cada canto do planeta.
Também achei muito interessante que, pelos olhos de Melinda, nós enxergamos o quanto as pessoas são mesquinhas, barulhentas, frias. O quanto há de picuinha no sistema, na sociedade. O quanto se fala muito, mas não se diz nada. Pensem só, não seria interessante ter acesso aos pensamentos de uma pessoa, mas assim, saber tudo mesmo? Em Fale! nós temos essa oportunidade: ler esse livro é como ler os pensamentos de Melinda, sem filtro algum. Tudo o que ela não fala, ela pensa. E, de tanto falarem ao leitor, tanto Melinda quanto Laurie nos fazem pensar também.
Pensar em quantas mulheres, jovens, adolescentes, crianças são vítimas de violência todos os dias. Pensar em quanto algumas pessoas, até mesmo pessoas que amamos, estão sofrendo caladas, pedindo silenciosamente por ajuda ou apenas por alguém que as escute. Pensar no quanto somos negligentes emocionalmente com as pessoas e no quanto as pessoas foram negligentes conosco. Não é fácil falar, mas também parece que é bem difícil escutar. E isso deveria ser mais fácil, não? Então por que não escutamos? Por que tapamos os ouvidos e fugimos das monstruosidades, das coisas horríveis do mundo, das experiências tristes das pessoas? É fácil ser amigo quando tudo está bem, difícil é continuar sendo amigo, amigo de verdade, quando a situação engrossa. Ninguém quer ficar perto de uma pessoa triste, deprimida. Ninguém quer ficar do lado do fracassado, do esquisito, do caladão. É muito fácil dizer que se está preocupado com uma pessoa, mas mesmo assim não procurá-la, não tentar ajudá-la, não escutá-la.
Na verdade, acho que é disso que esse brilhante livro fala: sobre falar e sobre escutar. Quando Melinda finalmente nos diz – a nós, os leitores, primeiramente – o que realmente aconteceu, é como se algo calasse na gente. Eu senti o silêncio aqui dentro de mim nesse instante e tudo perdeu a cor. De repente as tiradas de Melinda não eram mais tão engraçadas, de repente tudo estava mais denso, mais escuro. E é aí que a gente começa realmente a compreender e a sentir as feridas tão profundas de Melinda. E, quando ela finalmente fala, quando o livro termina… você tem vontade de gritar, de gritar bem alto, de falar tudo o que sente.
"Ela fecha os olhos. A pele está meio cinza, desbotada, tipo de roupa de baixo lavada demais, prestes a desmanchar." Página 91.
E aí eu preciso falar de como a narrativa de Laurie é brilhante. Ela é tão cativante que nos transporta para dentro do livro e, mais que isso, o livro se transporta para dentro da gente, como se tudo ali estivesse realmente acontecendo conosco. É esse o nível de imersão que a escrita de Laurie traz. E isso é algo tão eloquente, tão inteligente e tão brilhante, que poucos, pouquíssimos autores tem a habilidade de fazer. Se eu já gostava da Laurie, agora eu a venero e quero ler cada texto que ela escreveu. Bem que a Editora Valentina poderia trazer mais alguns títulos da autora pra gente, não? Fica a dica.
E falando na Editora Valentina, gostei muito, muito mesmo do trabalho que ela fez com o livro. Principalmente pela atenção e pelo cuidado que tiveram com um tema tão delicado. No final do livro há um apêndice falando sobre as vítimas de agressão sexual nos EUA, traduzido do original. Porém, antes dele, há um apêndice sobre a violência sexual no Brasil, informando estatísticas e inclusive oferecendo canais de acesso para denúncia e ajuda. Parabéns pela atitude, editora. Isso fez a conexão entre um livro estrangeiro com a nossa realidade. Isso mostra que essa violência acontece aqui, na nossa cidade, no nosso bairro, talvez na nossa rua. E que devemos ficar atentos a isso, no sentido da nossa própria proteção e também para ajudar os outros.
Se você não tem medo de temas fortes, deixe Fale! calar fundo no seu peito. Tenho certeza de que não vai se arrepender. Pelo contrário, será uma das suas essenciais e melhores leituras.
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