Carla.Parreira 26/03/2024
O herói de mil faces (Joseph Campbell). O conceito das fases da jornada do herói, delineado por Campbell, estabelece uma narrativa cíclica composta por dezessete estágios pelos quais o herói, representado por figuras mitológicas como Osíris, Édipo, Prometeu, Teseu, Ulisses, Buda, Moisés ou Jesus, deve passar. Resumidamente, as fases da jornada do herói podem ser representadas pelo seguinte esboço: Primeiramente, temos a partida, na qual o herói é convocado para uma aventura através do chamado da aventura, em que algo o motiva a abandonar sua vida cotidiana. No entanto, é comum que haja uma recusa inicial ao chamado, uma hesitação em enfrentar o desconhecido. Nesse momento, entra em cena o auxílio sobrenatural, uma intervenção divina ou sobrenatural que impulsiona o herói a seguir seu destino. A partir daí, o herói passa pela passagem pelo primeiro limiar, um teste ou obstáculo que marca o início de sua jornada e o separa de sua vida anterior. No estágio seguinte, conhecido como 'o ventre da baleia', o herói enfrenta uma dificuldade inicial que quase coloca fim à sua jornada. Essa fase representa a saída do mundo conhecido e o mergulho no desconhecido. Em seguida, temos a iniciação, que é composta por diversas etapas. O herói passa pelo caminho de provas, enfrentando uma série de desafios que o transformam e o prepara para o clímax da jornada. Durante essa jornada, o herói também pode encontrar a deusa, uma figura divina que proporciona poderes e meios para que ele vença os obstáculos. No entanto, o herói também pode se deparar com a tentação, que pode assumir formas físicas ou psicológicas, não necessariamente ligadas a uma mulher. Além disso, é comum que haja um momento de reconciliação ou expiação com o arquétipo paterno, simbolizado pela sintonia com o pai. A apoteose marca o ápice da jornada, quando o herói está iluminado e aceita seu destino, preparando-se para enfrentar o clímax. Após essa etapa, o herói conquista a bênção última, alcançando o objetivo de sua jornada. Por fim, temos o retorno. A recusa do retorno: após seu triunfo, a incerteza se instala. O herói enfrenta o risco de falhar, mas um escape extraordinário acontece e ele recebe a assistência necessária para retornar ao seu mundo. A passagem pelo limiar da volta é a saída do mundo desconhecido para o conhecido. Senhor dos dois mundos, o herói agora domina tanto o mundo conhecido quanto o desconhecido. Com a sabedoria e poderes adquiridos, ele desfruta da vida comum com maior plenitude. Melhores trechos: "...Os mitos e contos de fadas de todo o mundo deixam claro que a recusa é essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio. O futuro não é encarado em termos de uma série incessante de mortes e nascimentos, e sim em termos da obtenção e proteção do atual sistema de ideais, virtudes, objetivos e vantagens... Com freqüência, na vida real, e com não menos freqüência, nos mitos e contos populares, encontramos o triste caso do chamado que não obtém resposta; pois sempre é possível desviar a atenção para outros interesses. A recusa à convocação converte a aventura em sua contraparte negativa. Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela 'cultura', o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva. Seu mundo florescente torna-se um deserto cheio de pedras e sua vida dá uma impressão de falta de sentido mesmo que, tal como o rei Minos, ele possa, através de um esforço tirânico, construir um renomado império. Qualquer que seja, a casa por ele construída será uma casa da morte; um labirinto de paredes ciclópicas construído para esconder dele o seu Minotauro. Tudo o que ele pode fazer é criar novos problemas para si próprio e aguardar a gradual aproximação de sua desintegração... Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas. Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu uma literatura mundial plena de testes e provações miraculosos. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana... Não pode haver dúvida: os perigos psicológicos pelos quais passaram gerações anteriores, com a orientação oferecida pelos símbolos e exercícios espirituais de sua herança mitológica e religiosa, nós, hoje (desde que não sejamos crentes ou, se crentes, desde que nossas crenças herdadas fracassem em representar os reais problemas da vida contemporânea), devemos enfrentar sozinhos ou, na melhor das hipóteses, com uma orientação experimental, improvisada e poucas vezes muito efetiva... Devemos ter fé em que o pai é misericordioso; assim, devemos confiar nessa misericórdia. Com isso, o centro da crença é afastado da tenaz apertada e escamosa do deus atormentador, e os ogros ameaçadores desaparecem. É essa a provação a partir da qual o herói deve derivar esperança e garantia da figura masculina do auxiliar, por intermédio de cuja magia (amuletos de pólen ou poder de intercessão) ele é protegido ao longo de todas as assustadoras experiências da iniciação, fragilizadora do ego, do pai. Pois, se for impossível confiar na terrível face do pai, nossa fé deve concentrar-se em algum outro lugar (Mulher-Aranha, Mãe Abençoada); e, com essa confiança necessária ao apoio, suportamos a crise apenas para descobrir, no final de tudo, que o pai e a mãe se refletem um ao outro e são, em essência, a mesma coisa... O paradoxo da criação, do surgir das formas temporais a partir da eternidade, é o segredo germinal do pai. Ele jamais pode ser efetivamente explicado. Em conseqüência, há em todo sistema teológico um ponto umbilical, um calcanhar-de-aquiles que o dedo da mãe-vida tocou e onde a possibilidade do perfeito conhecimento foi comprometida. O problema do herói consiste em penetrar em si mesmo (e, por conseguinte, penetrar no seu mundo) precisamente através desse ponto, em abalar e aniquilar esse nó essencial de sua limitada existência. O problema do herói que vai ao encontro do pai consiste em abrir sua alma além do terror, num grau que o torne pronto a compreender de que forma as repugnantes e insanas tragédias desse vasto e implacável cosmo são completamente validadas na majestade do Ser. O herói transcende a vida, com sua mancha negra peculiar e, por um momento, ascende a um vislumbre da fonte. Ele contempla a face do pai e compreende. E, assim, os dois entram em sintonia... Terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio da graça de alguma personificação masculina ou feminina, humana ou animal, o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a bênção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos. Mas essa responsabilidade tem sido objeto de freqüente recusa. Mesmo o Buda, após seu triunfo, duvidou da possibilidade de comunicar a mensagem de sua realização. Além disso, conta-se que houve santos que faleceram quando estavam no êxtase celeste. São igualmente numerosos os heróis que, segundo contam as fábulas, fixaram residência eterna na bendita ilha da sempre jovem Deusa do Ser Imortal... que retorna consiste em aceitar como real, depois de ter passado por uma experiência da visão de completeza, que traz satisfação à alma, as alegrias e tristezas passageiras, as banalidades e ruidosas obscenidades da vida. Por que voltar a um mundo desses? Por que tentar tornar plausível, ou mesmo interessante, a homens e mulheres consumidos pela paixão, a experiência da bem-aventurança transcendental? Assim como sonhos que se afiguraram importantes à noite podem parecer, à luz do dia, meras tolices, assim também o poeta e o profeta podem descobrir-se bancando os idiotas diante de um júri de sóbrios olhos. O mais fácil é entregar a comunidade inteira ao demônio e partir outra vez para a celeste habitação rochosa, fechar a porta e ali se deixar ficar. Mas se algum obstetra espiritual tiver, nesse entretempo, estendido a shimenawa em torno do refúgio, então o trabalho de representar a eternidade no plano temporal, e de perceber, neste, a eternidade, não pode ser evitado..."