spoiler visualizarJoão 15/03/2019
Clara dos Anjos - Lima Barreto.
Perdeu os três vinténs: assim foi que Clara se desgraçou.
Conta-se que ao tempo do Império as meninas carregavam um colar cujo pingente era uma moeda de três vinténs. A tal moeda deveria ser entregue ao marido por ocasião das núpcias, a significar que a moça se mantivera casta até ali. A virgindade da moça deveria então ser retirada pelo marido, assim como a moeda de três vinténs.
O dogma social que impunha a castidade da mulher até o casamento é o mote que governa a narrativa em “Clara dos Anjos”.
Se, nos dias que correm, ainda é possível perceber vestígios de uma ética que inflige sobre os corpos femininos o dever da castidade antes do casamento, não há dúvida de que na sociedade retratada por Lima Barreto, esse valor moral era ainda mais incisivo. Aliás, o estado de virgindade antenupcial constituía verdadeira pedra de toque capaz de dignificar ou de desgraçar a vida toda de uma mulher.
Em “Clara dos Anjos” temos, portanto, um romance mais ou menos datado. É que o dramático desfecho que afetará Clara dos Anjos só pode ser mensurado adequadamente se o comportamento e o destino das personagens forem avaliados à luz dos valores que informavam a sociedade da época.
Clara dos Anjos é uma moça de seus dezoito anos de idade, que vive com seus pais no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. De origem humilde, Clara é retratada como mulata e pobre. Desde muito cedo foi mantida sob rigorosa vigilância da mãe, que a mantinha recatada e reclusa em casa. O pai não se fez tão presente no dia a dia da filha, em razão da extensa rotina de trabalho que o ocupava.
Na infância e na juventude, Clara teve pouco contato com o mundo, graças à vida doméstica que lhe impunha a mãe, sempre vigilante e temerosa dos perigos que o contato com a vida mundana pudesse oferecer à filha. Assim, Clara fora educada por uma mãe vazia, malemolente e “sem caráter (no bom sentido)”. O único contato com as coisas da vida, Clara o obtinha através de poemas líricos e das modinhas que falavam de amor. Nutria, assim, a ansiedade, que é própria da juventude, pelo dia no qual alcançaria a inefável experiência do amor capaz de lhe realçar o sentido da vida.
Vê-se, então, que Clara era alvo fácil para o sem-vergonha do Cassi Jones, um famigerado sedutor de mocinhas pobres e desamparadas que habitavam os subúrbios do Rio de Janeiro.
Diferente de Clara dos Anjos, Cassi Jones era um rapaz experiente nas coisas da vida. Nascera branco e em família abastada, de origem nobre. Nunca trabalhara e fora sempre mimado pela mãe, que lhe servia de protetora, salvando o filho das enrascadas em que se metia. O Cassi era um pústula, um mau-caráter, vil, o pior dos homens. Arrancava dinheiro das apostas no jogo do bicho, em rinhas de galo e no carteado. Tal como o “Jeremias”, no “Faraoeste Caboclo”, desviginara meninas inocentes e ainda seduzia mulheres casadas, desgraçando a vida de todas. Por sua causa algumas se entregaram ao meretrício, outra se suicidara.
Cassi Jones era um criminoso inveterado. Basta lembrar que as leis penais de antigamente tipificavam o crime de “sedução”. Isto é, ia parar no xadrez quem fosse condenado por “seduzir mulher casada”.
Mas por que o crápula do Cassi o Jones não afogava seu apetite sexual com prostitutas, ao invés de desgraçar, da noite para o dia, a vida de tantas jovens e famílias? O narrador nos explica: “Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna de um criminoso nato - o que havia nele”.
Clara dos Anjos, não por falta de aviso, deixou-se seduzir. Talvez porque nela fosse ingênua, fraca e insegura a personalidade que a educação dos pais moldara, como sugere o narrador ao final da história. Ah, mas que importa?! A questão, em nossos dias, já não é mais essa. Hoje, espera-se, Clara dos Anjos teria liberdade para deixar-se ou não seduzir. E Cassi Jones? Não seria criminoso, mas sim, quando muito, um sem-vergonha, um sujeito imoral.
- “Mamãe! Mamãe!
- “Que é, minha filha!”
- “Nós não somos nada nesta vida”.
Esse é o último diálogo que marca o triste fim de Clara dos Anjos.
Boas leituras!